Por ora, untitled

Comecei a acordar assim que caí no sono. A consciência vem e vai. Cacos mnemônicos se misturam a migalhas oníricas e xarope de groselha para formar a Grande Geleia Fugaz. Sempre que escrevo algo sob as novas regras ortográficas me dá vontade de espinafrar a famigerada reforma, mas não vou perder tempo com isso agora. Gasto energia demais com bobagens que, por preguiça de pensar, acho importantes. São bobagens porque estão fora do meu alcance. E, sobretudo, por não afetarem diretamente meu mundo. Meu mundo, donde tirei isso? Não tenho mundo. Meu mundo é o mesmo mundo de todos eles, queira eu ou não. Tenho essa mania de me achar um indivíduo, mas sou idêntico aos outros bilhões que pululam neste charco de formol. Sou geneticamente implicante. Os outros me fazem mal, o mundo me faz mal. E acabo levando psicossomaticamente. Boio uns segundos, suficientes para ver assomar aos poucos lá longe o cais da consciência enquanto subo e amo e desço e grunho e visto o terno de tergal chumbo que usei no meu casamento com a Sílvia e afundo até o piso da fossa abissal.

Comecei a dormir assim que a Soninha ligou a tevê. Pouco antes de perder a consciência me aconcheguei no volume macio e cheiroso estendido ao meu lado e, semiacordado, comecei a sonhar com a Sílvia, depois com a Nancy, depois com a Ivani, depois não me lembro. Sou um lenhador ou algum outro trabalhador braçal e mantenho minha dúzia de mulheres em pé amarradas de costas para uma parede. Nuas, de pernas semiabertas. Logo antes de sair para o trabalho e logo depois de voltar do trabalho, penetro-as. (Não vou abrir parênteses hoje, por favor. Penetro-as e pronto.) Elas não parecem gostar ou desgostar. Simplesmente ficam lá peladas em pé esperando que eu as cubra uma a uma, consecutivamente, sem saltar essa ou aquela nem me demorar mais ou menos com aquela ou essa. Às vezes, sei lá por que cargas d'água (preciso escrever sobre as delícias de usar expressões idiomáticas), lasco uma beijoca numa. Mas sem espalhafato. Ou intenção de causar inveja às demais. É simplesmente um beijo, sem deferência, afeto ou segundas intenções. E, quando dou um beijo, é na bochecha ou no pescoço. Nunca na boca. Também tenho meus nojos.

Então sinto a Soninha massageando meu pau. Na tevê o carinha das Casas Bahia quer que eu pule da cama e saia correndo até a João Pessoa, Sanca, para garantir até sábado meu jogo de cozinha e um rádio-relógio de brinde. Agora lembrei -- a Soninha desligou meu rádio-relógio, sempre sintonizado nos 105,9 Mhz da Cultura FM para assistir a novela da Globo. Queria escrever sobre essa praga nacional, mas está além do meu estômago. Um pesado manto de perplexidade se abate sobre meu intelecto e, inerme, apago. Quando digo que não suporto novela a Soninha me olha como se eu estivesse numa jaula do zoológico.Certa vez comecei a explicar, pensando em mencionar coisas como previsibilidade, redundância, maniqueísmo, mas vi que ela desligou na terceira palavra. Novela, qual religião e Deus, é antiintelecto. Questão de fé.

Pronto, estou uns setenta por cento acordado. Ela desiste de me ressuscitar e aumenta o som da tevê. Choraminga. Que não quero fazer sexo. Que não gosto mais dela. Por que é que caí tão rápido daquelas quatro ou cinco gozadas por noite para o mais lasso abandono. (Não exatamente nestes termos. E não foi tão rápido quanto possa parecer.)

Meu amorzinho, a culpa não é sua. (Vai explicar uma coisa dessas a uma mulher.) Estou passando essa fase difícil, entenda. Logo volto ao normal. Assim que superar a separação da Sílvia. O doutor Gê diz que é assim mesmo. Tenha paciência.

Ela vem insistindo para que eu tome viagra. Nem sonhar -- meu primo Ozório morreu de pau duro depois de quase matar minha prima Leninha numa sessão ininterrupta que, alegam os dois filhos, durou mais de seis horas.

Para evitar que a noite acabe num desenxabido anticlímax, peço que me conte mais uma vez como foi sua transa com o Lacerda no quartinho dos fundos do boteco. Como todo bom fantasista, sou um incorrigível voyeur.

Obedeço

Depois de tudo (tudo que eu fiz), ela me deixa sem respostas, como se nada tivesse acontecido.
E, caridosa, ajunta: sou, sim, capaz, pois que posso muito, posso muito mais.
Te dei nomes, sobrenomes eu te dei -- o eco escuta, amor: minha dríade, minha ninfa, minha fada.
E uma lista de apodos imperfeitos -- não finge que desconheces os nomes com que te chamei.
Não é hoje mais meu dia?
Me concentro, não me lembro. Glacial noite de junho? Matinal dor de dezembro?
Estarrecido vejo (ora, direis, te estarreces por ninharias), superada nossa fase exploratória.
Ecos inda escuto. Mas ecos já não há.
Se até ontem vinham em esperança, eis que voltam como história.
Tantas rimas ficaram abertas (ai, nada casa com a esperança de que ela entenda este meu canto?),
se desejo, ela se enfeza; se sussurro, ela se cansa.
Devo então ser realista, a fria ordem recebo e aceito: desperta deste teu sonho.
A ilusão é das crianças. Mesmo que não queiras, o mundo em volta é risonho.
Mesmo acompanhado, teu mundo é sempre tão medonho.

O que mais tenho é falta

ÉÉÉ O O O AM OR OR OR QUE E E ME XE XE E COM OM OM  MI NHA NHA NHA CAB EÇA ÇA ÇA E E E ME E E DEIX A IXA XA ASS IM IM IM
Me ponho em pé num salto, estico os braços para a frente, saio em disparada, dou um encontrão na porta aberta do meu guarda-roupa que não guarda quase nada, caio sentado na cama. Sonéculas sonêmbulas.

Puta merda, a Soninha mexeu de novo no meu cel, tirou Du Holde Kunst e botou isso.

FRED

-- Acorda-maria-bonita.

-- Que é que você quer, praga?

Merda, ainda estou ébrio de ontem. Aonde fui? Com quem? O Lacerda? E... ela? (Oh não.)

-- A copa vem aí. Comprei três caixotes de fogos. Num vejo a hora de sambar na Paulista.

Ele e o Afonso querem ver os jogos na casa dele. Tem uma baita churrasqueira de tijolinhos à vista, forno a lenha e, principalmente, bar. Em frente à piscina aquecida, por isso a Soninha também quer. Uma das vantagens, assim ela larga do meu pé umas horas. Nunca vi ninguém gostar tanto d'água. "Sou pisciana". Argh. Não torço nem pela seleção nem por time nenhum. Deixa de fazer tipo, seu inteleca fajuto, o Afonso tira uma. Torce, sim. Todo mundo torce pela seleção. Okay, vale o esforço. Só que o Fred não vai se apoderar do controle este ano. Ele gosta do Galvão. Eu prefiro o Luciano. De qualquer forma sei que vou acabar mergulhado na Soninha e depois boiar na água tépida.

Queria voltar para a cama, agora é tarde.


Untitled

Botar um título em que quer que seja já é luxo demais, que dirá numa postagem dum blog. Fico encabulado de postar mais de 3 linhas, de tanto abuso as palavras vão descorando, já é quase impossível ler, já é quase impossível escrever, vou flutuando nesta nuvem de cacos de letrinhas opacas, perdi até a vontade de gritar.

Conhecimento atávico

A primeira vez que beijei a boca da Soninha (espero reunir força um dia para contar) fiquei surpreso: tinha cheiro de leite.

Homenagem a Alfredo Bosi

Celular. AFONSO. É hoje.

Fala, Af.

Eu escuto.

Me ligou pra dizer isso?

Escuto.

O Afonso diz que inventamos Deus para preencher o grande vazio que ocupa nossas cabeças. Tell me something I don't know. Me diz isso todo dia. Agora deu de ligar para me dizer isso de manhã, à tarde e de noite.

Me acho meio obsessivo, mas o Afonso, putz. Dedica a existência a querer comprovar a inexistência de Deus.
É impossível não pensarmos em nada, certo?

É, concordo. Não dá pra não pensar em nada. Salvo quando lemos Heidegger. (Digo, Wittgenstein e Derrida)
Aí está. Como temos Deus, logo pensamos n'Ele. Portanto, Deus é o Antipensamento.

Ontem comecei a reler Porque não sou cristão, o porque na ortografia de Portugal. Minha ex-mulher Sílvia me chamava de herege, eu ria da palavra demodê. Não é possível ser herege hoje. Eu não acredito em nada e quase todos que conheço não acreditam em nada, uns com patético orgulho. Tudo perdeu a graça.

Russell é racional demais para a macacada deslumbrada que dá importância excessiva à vida. De lambuja -- o que, para mim, vale mais a pena --, desmascara uns golpes que os poderosos vivem dando nos caboclos em eterno estado de hipnose. Quem não usa o cérebro não pode compreender os poucos que usam.

Is this what it's all about?


Tempos atrás (quando? por que tem sempre de ser tão vago?) eu gostava de fantasiar que um dia (um dia, um dia, ô tique que não me larga) eu daria um jeito de retornar ao meu útero perdido. 

Sim, no mais brochante dos realismos fantásticos. Será o realismo fantástico o limite dum sul-americano?

Na fantasia, eu deparava com esse útero (sorry, cacoete anglicista) e entrava, com alguma dificuldade (não posso explicar exatamente como; só digo que, sendo tão duro de sair, só poderia ser duro de entrar; e não era o de mamãe; mamãe está morta e não me atrevo a fantasiar para além do que sou capaz; mesmo ciente de ser este meu caminho suave). 

Daí em diante, o previsível. Ao menos para mim. Perdi a razão perdendo o aconchego.

Hoje, ao acordar, me lembrei de como gostava dessa fantasia. E me lembrei de que gostava a ponto de não me importar muito em saber que provavelmente era a mesma fantasia partilhada por metade dos marmanjos choramingões do mundo. 

Lembrei e uma bola peluda asquerosa se metendo dentro da minha garganta me deixou nauseado. Nos tempos das minhas fantasias minha cabeça consideraria isso uma experiência e então a creditaria na conta "Aprendizados" e a debitaria da conta "O sofrimento é didático". Como era gostoso o dom misericordioso de me iludir.

Impossível cisma


O carro vem descendo a rua. Não quero olhar e olho.
Ainda hei de desvendar o que há por trás da movimentação das coisas. Será um mecanismo? Devo acrescentar que não se trata de nada religioso. (O religioso é horrível.)
Tampouco é algo nietzscheano, embora Nietzsche, aquinhoado pelo deus que ele mesmo enterrou com a sorte de ter existido no século 19, tenha compreendido e explicado todos os mecanismos. Nietzsche e seus contemporâneos foram o estertor.
Vivi inebriado pela busca de saciar meu corpo. Agora que sei que não tenho mais onde buscar, devo aceitar como minha esta verdade. Enojado, vejo que, como qualquer outro exemplar da espécie, também me deixei ludibriar pelo encanto da espiritualidade. Aquele vulcão de dores foi à toa. Não quero mais cultivar cada uma delas.
O carro passa e desaparece e tudo parece normal.

Resolução


A partir deste ano só vou rir ou chorar no dia primeiro de janeiro.

A ostra e a pérola


Tocam o interfone. É ela. Mais ou menos no horário. Gosta de ser pontual. Nunca dei bola pr'esse tipo de coisa. Foi uma das razões. Lá no meio da lista. Fiquei surpreso com a quantidade de itens quando ela me apresentou, fazendo pose de cobradora. Passada a surpresa depois dumas horas, veio a mortificação. Mais uma. Me acho um mortificado profissional mas não consigo me acostumar. Tenho tudo isso de defeitos? perguntei em pensamento, cara de tacho, como minha mãe curtia denunciar. Mãe, sou seu filho, vamos ficar do mesmo lado. Mas ser minha cúmplice nunca passou pela cabeça dela. Mamãe cultivava um exército de inimigos. Eu, o general. Foi minha herança. Ninguém pode ter tantos defeitos assim. Fora eu, claro. Mas pensava que meus defeitos fossem secretos. Meus sigilos. Não imaginava que davam na vista. Sou tímido, avesso à explicitude. Não gosto de lista. Gosto de acidentes. Mesmo que apenas rímicos. Até ontem saboreava meu irracionalismo. Hoje mais nada tem sabor. Estou perdendo os sentidos. Em parte é bom. Meu corpo sempre foi um fardo. Romântico, sei. Não posso ser outra coisa. Antes, estranhava os que não fossem. São tão estranhos quanto os que gostam de matemática. Tinha um moleque que sentava na frente da classe que terminava a prova em dez minutos, nos abandonando a nós burros ao quadrado às voltas com trinômios e equações de sei lá quantos graus. O miserável levantava fagueiro (ou seria lampeiro?) e entregava a prova à professora com o rosto sereno dos incólumes aos traumas trigonométricos, sob o olhar adulador da mestra, que parecia gozar intimamente, "Esse vai se salvar do desastre", desastre a que nós idiotas ao cubo estávamos fadados, então o crânio ia embora me deixando tão desconcertado, que eu sequer tinha ânimo para a inveja. Quer dizer que os lógicos não vivem obcecados pelo passado? E eu aqui pensando que fosse impossível ser obcecado por outra coisa. Adulto, descobri que havia gente -- pouca, mas havia -- que não era obcecada por nada. Então desisti do passado, contando que outra obcecação logo viesse substituí-lo. Foi assim que perdi o único bem que tinha e fiquei vazio. E com a idade fui deixando de ser romântico. Os que deixam de ser românticos estão fadados ao nada.

De volta ao toque do interfone. Pode subir, sussurro pertinho do aparelho, torcendo para não gaguejar de ansiedade. É impressionante quantos gaguejos duas palavrinhas podem guardar.

Escuto o elevador parar e a porta do elevador abrir e fechar. Depois os passos decididos e contidos. Então a campainha. Um toque seco de quem sabe do que as campainhas são capazes.

A chave. Onde foi que botei a chave? Fico em pânico. Tudo que perco, perco definitivamente. Ela não poderá entrar. Eu não poderei sair. O fim.

-- Está na fechadura -- ela instrui do outro lado.

Abro. Fecho os olhos e sinto um selinho nos lábios. Não quero mais abrir os olhos.

-- Que é que tá fazendo pro jantar? -- Ela presta atenção no shshshshshs vindo da cozinha e funga arreganhando o narizinho. -- Hm, estrogonofe. Minha comidinha preferida.

Sorri o sorrisinho meigo no rostinho de anjo de Júpiter que me fisgou a primeira vez que a vi na loja principal da Livraria Cultura no Conjunto Nacional. Tinha três livros nas mãos. O de cima era O apanhador etc. Estamos lado a lado no corredor de literatura estrangeira, tão próximos, que sinto não apenas seu perfume mas seu cheiro de fada. Começo a virar muito lentamente a cabeça e paro quando obtenho visão lateral suficiente para espiá-la sem que ela perceba enquanto finjo que estou interessado nos livros à minha frente. "Já leu Cidade de cristal"? Levo um susto e olho para o outro lado pensando que ela se dirigisse a alguém. Mas continuamos só nós dois no corredor. Torno a girar a cabeça, ela sorri para mim com as sobrancelhas erguidas. "Perguntei se já leu Cidade de cristal".

Digo que sim, ela pergunta minha opinião, respondo que acho Auster mediano e exangue. Ela ri meio sismada, meio desinteressada. Mordo a língua, arrependido. Eu e meus adjetivos supérfluos.

Em um mês fomos morar juntos. O Afonso, meu melhor amigo, torceu o nariz. Ela não parece confiável, dizia a toda hora. Deixa de ser encucado, Af. Desse jeito você vai morrer sozinho num asilo. E você, ele augurou, vai quebrar a cara. Eu ria. O Afonso sempre me invejou.

Nosso idílio durou exatos sete meses. Ela demonstrava gostar de mim, embora parecesse sufocar o riso quando olhava as minhas pernas finas e glabras. Naquela sexta-feira 24 de julho entro no quarto, ela cochichando ao celular. Nem se dá o trabalho de fingir. Marcando um rolê com alguém.

A cara agoniada do Afonso fulgura dentro da minha cabeça feito o relâmpago anunciando o fim do mundo. Sim, meu mundo acaba de dez em dez minutos.

Ela vai embora, começo a me arrastar pelo apê feito alma penada. Uma manhã de outubro, desesperado, resolvo enfim ligar. Para minha surpresa, ela concorda em vir jantar aquela noite.

Minha panela de pressão, marca Denmark, tem "non stick", ótimo para não grudar comida. Comprei em duas prestações nas Bahia, liquidação, apenas trinta e nove reais e noventa e nove centavos. Quando comecei a usar me admirei como funcionava bem, melhor do que a minha velha Clock. E não tão grande. E mais silenciosa. E na hora de abrir a pressão sai toda duma vez. Rápida e eficiente.

O shshshshs sibila cada vez mais alto e seco e longínquo. Estará prestes a explodir? Morro de medo de panela de pressão. Trauma de infância, acho. Aos onze anos  passava as férias de janeiro no sítio da minha tia Laurita em Batatais quando a panela estourou, lavando o teto e as paredes de caldo de feijão.

Será que já não cozinhou? Os olhões de dríade se arregalam para mim.

Vai lá abrir enquanto sirvo o vinho, peço, torcendo o saca-rolha no Pinot Noir que paguei quase noventa paus no Santa Luzia da Lorena.

Tomamos a garrafa, jantamos. O estrogonofe estava ótimo, ela tenta me animar. Mas agora tenho de ir. Assim tão cedo? Me dá um beijinho na bochecha, faz meia volta e sai, me deixando parado no meio da sala olhando a porta se fechar.

Documentário


Alguém disse que a dor precisa ser humilde?

Deixa-me entrar


Perto aqui de casa há a rua Machado de Assis, a Olavo Bilac, a Casimiro de Abreu, a Castro Alves. Tenho de concordar com elas, pois são corretamente paralelas. Mais: estão entremeadas de vielas batizadas para homenagear eventos históricos como a batalha de Curupaiti. E têm ainda em comum o fato (que não sei se é deveras fato) de terminarem na Espírito Santo. Para mim também está correto -- minha família, que já não existe, era fervorosamente católica.

Não sou muito de passear a pé pela cidade. E quando saio em geral subo ou desço pela Machado sem me dar conta de onde estou ou aonde vou (e não pense que é exagero ou tique literário se acrescento que nem de quem sou). E, se de tal conta me dou, é por outros motivos, pessoais, nenhum deles muito relevante.

Quanto à minha rua, tem nome de senador, um político obscuro esquecido na década de quarenta, acho, cujo maior feito talvez tenha sido virar nome de avenida. (Pena que os políticos não sejam como Mario de Andrade nem sintam o mesmo horror ante a possibilidade de lhes ocorrer igual destino.)

Moro há décadas na avenida do senador, mas nunca me orgulhei nem disso nem de outras coisas. O que eu queria mesmo era morar numa rua sem nome e se um dia me afastasse de casa o suficiente para me perder, fosse impossível saber onde moro. Ou aonde vou.

É cedo


Sair neste vento só de camiseta pode ser um suicídio a esta altura. Mas que se dane. Bom dia, São Paulo! Fazia tantos anos que a garoa não voltava, que parecia apenas mais uma das minhas ilusões mortas.

Decepcionante segurança


Quando manhã após manhã acordo, concluo que não preciso me olhar no espelho para saber que ainda sou e sempre serei eu mesmo.

Breve entrevista c'um escritor acima de qualquer suspeita

Noitinha, ressaca nauseabunda quando eu devia é estar começando a encher a lata (o que não vai me impedir de fazê-lo doravante, obviamente), nível zero de inspiração (pombas, depois que resolvi ter um blog, perdi não só o fio da meada como a própria), não faço ideia do que escrever.

Estou em vias de me decidir a voltar ao boteco do Lacerda quando a musiquinha do programa de email faz priiiiim e a voz de locutor das Casas Bahia anuncia, "Youu'vee goot maaiiil!"

Mais um spam, penso c'os botões do paletó que usei no meu casamento com a minha ex-mulher Sílvia que me trocou por um gerente de banco chamado Augusto. (Do nosso banco, cáspite.). Provavelmente o spam foi enviado por um descendente de cossaco vivendo numa caverna ao pé do Everest louco para me vender algum afrodisíaco milagroso. Como esses caras descobriram minha broxisse, nem imagino.

Mesmo convicto de que é propaganda de viagra, vou assuntar, claro. E em que pese este meu ar de estóico niilismo (sei, há os que preferem grafar "nihilismo"; eis aí uma opinião que ainda não formei; e não sei como é que os filólogos-burocratas, que se acham donos da língua, querem que eu grafe), sempre acalento um fio de esperança -- vai ver a Sílvia lembrou que existo depois desses três meses. Terá se cansado do gerente assim tão cedo?

Olho o nome do remetente: LFV.

Franzo o cenho, incrédulo. Não pode ser. O homem não ia se dignar a responder. E mesmo que, não seria assim tão rápido. Não com aquela cara de sonolento em constante marcha-lenta.

Clico em cima do email em negrito.

"Prezado sr. Vaccari. Tudo bem. Mas só se for via Skype. E com duas condições: nada de trocadilhos indesejáveis. Me reservo o direito de terminar a entrevista incontinenti caso essa condição seja violada. E sem vídeo. Meu endereço é..."

Segue o endereço de LFV no Skype, que tenho por bem omitir. Não que FLV, digo, LVF haja estipulado. Mas é o mais recomendável, você concorda?

Passo o ponteiro do mouse sobre o link e aparece a mãozinha solícita, evocando meu clique. Eu falando com o Luiz Fernando em tempo real! Sinto um frio no estômago. Antes de efetivar o clique, porém, me ocorre a boa ideia de ir até a cozinha e abastecer meu copo, que há vários minutos jaz vazio num canto da mesa do computador. Em geral não preciso de motivos para comemorar, mas se tem uma ocasião que pede um balla, é esta.

Vou, volto e clico por fim. O Skype azulece a tela. O telefone intergalático bipa. Uma. Duas. Três vezes.

-- Boa noite.

Uau, é a voz dele! Quero responder mas minha língua está grudada no chão da boca (será este o nome do antípoda do céu da boca?). Incapaz de articular duas sílabas que pelo menos soem como resposta à saudação vinda dos autofalantes, emito um mumunho e agarro o copo e sorvo metade do uísque, que em dois segundos parece exudar pelos poros do meu rosto. Ainda bem que LVF, digo, VLF vetou o vídeo. Imagine o fiasco se ele me visse assim.

Depois do meu mumunho, silêncio. Será que ele já está esperando minha primeira pergunta assim de chofre? Sem nenhum foreplay?

Liquido o resto do balla e sinto a coragem nascer por encanto. Agora vai.

-- Seu Verissimo, primeiro queria...

-- Pode me chamar de tu. Não sou afeito a formalidades.

Não sei se devo me alegrar com a prerrogativa. A última vez que usei a segunda pessoa foi no ginásio. E nunca aprendi em quais casos devo apor um s no final.

Indeciso, resolvo partir pras cabeças. Já que cheguei até aqui, f..., digo, dane-se.

-- Teria algum problema se eu o chamasse apenas de "Vê"? É que Verissimo me soa tão superlativo.

Silêncio. Dois. Quatro. Seis. Dez segundos.

Já era, penso. Não sei se desanimo ou exulto. Que ideia, entrevistar o Verissimo. E soltar um pedido sem-vergonha desses logo de cara. Pombas, me sinto tão brasileiro nessas horas. Gosto de me imaginar um cara civilizado, tenho aqui comigo que na outra encarnação fui um lorde britânico, mas não passo dum cafajeste. Chamar o mais prestigiado escritor midiático (urgh) brasileiro por uma reles sílaba, onde já se viu? A petulância produz um insight agudo e cruel. Sim, atingi o nível último do alcoolismo. O mínimo que posso fazer é inventar alguma desculpa esfarrapada, fechar o Skype e voltar ao meu alpendre velho de guerra para terminar minha faina etílica. Mas que tipo de desculpa não soaria como mera desculpa? Minha cabeça está mais branca que lençol lavado com Omo. E se eu simplesmente desligar o computador? Afinal, o homem não me conhece. Nunca ouviu nem jamais ouvirá falar de mim. Sou tão ou mais desconhecido que o capítulo final de Finnegans Wake. Sair pela tangente apenas viria a acrescentar mais um vexame na longa lista  cujo registro provavelmente só eu mantenho. Além do mais...

-- Tudo bem -- LFV interrompe meu stream of consciousness. Deo gratia.

-- Seria demais pedir que aguardasse vinte segundos para uma viagem de ida e volta  à cozinha para reabastecimento? Serei meteórico, prometo.

Escuto minha própria voz fazendo a pergunta e não quero acreditar. Sim, AAA amanhã cedo. Sem falta.

Copo transbordando na mão, grau dez de autoconfiança etílica, inebriado de joie de vivre, por alguns minutos poderei fazer jus ao objeto introjetado do meu narcisismo mórbido. E, melhor de tudo, impunemente.

-- Vê, me diga uma coisa. Quando é que você planeja largar o osso?

-- A que osso você está se referindo?

-- Você sabe muito bem. Não se faça de desentendido.

Novo silêncio. Aguardo. Finalmente a lei está do meu lado. Como ele se omite, volto à carga:

-- Osso duro de roer você, hein Vê? Quem diria.

-- Amigo, tu por acaso está com fome? Trabalha em açougue? É ortopedista?

-- Não, Vê. Você sabe que não é nada disso. O que quero saber é: quando é que você vai se aposentar, abrir espaço para a nova geração, ora, vocês medalhões ficam aí esquentando lugar, você sabe, tem gente na fila querendo escrever, quem sabe chegou a hora de cuidar da aposentadoria, veja só o papelão que o Domingo está fazendo, assim de tenor esperando uma vaga no palco e o cara não se manca, pombas, já não conquistou todas as glórias? que mais ele quer? caramba, dá uma chance pros coitados, ainda mais você, sendo filho de escritor coisa e tal, olha, se meu pai fosse famoso, se tivesse publicado um livrinho que fosse, eu nem tava aqui te enchendo a paciência,  ia viver esnobando "Meu pai era escritor, entendeu? e não um escritorzinho qualquer, não, mas o maior escritor do Rio Grande, sacou?" Você sabe, sempre tem...

-- Chê...

-- ...o programa do Jô pra você mostrar seus...

-- Chê, JÁ DEU!

O tom categórico inusitado me tira do transe. Olho o copo. Inapelavelmente seco.

-- Me desculpe, seu Vê, é que minha mulher me deixou, sabe como é...

Silêncio.

-- Peraí, Vê, ainda tenho umas perguntas...

Silêncio.

-- Vê, não quero soar pretensioso, mas podíamos explorar umas possibilidades, sei lá, escrever a quatro mãos...

Silêncio.

-- Pelo menos me diga como terminar esta entrevista. Devo dar uma cortada abrupta como se o mundo tivesse acabado? Fingir que hoje é domingo? Apelar para aquele truque matelinguístico que você sempre usa...?

O poema perdido


Falando em poema perdido, ontem à noite desliguei fatigado ao extremo o computador, fui (fui? não estou bem certo; para variar, estava sonâmbulo) para o alpendre aqui de casa, peguei (será mesmo?) uma Bic e um maço de sulfite e enchi 2 ou 3 folhas com versos desvairados nesta minha letra miúda de mulher no cio. Isso é tudo que me lembro do episódio. Hoje acordei cedo, como sempre, e fui ao alpendre pegar as folhas para passar no computador, só achei a primeira. Cadê a(s) outra(s)?

Olhei no chão, verifiquei debaixo duns livros na mesa, espiei dentro do aquário, vasculhei a casa, o escritório, revirei tudo que vi pela frente, fucei até o edredom da Zezeí, minha pincher/chiuaua, lhufas. 


São 10:29. Já li mil vezes a primeira folha, tentando reconstituir a(s) outra(s). Debalde. Não tenho a mais ínfima ideia de como continuar. É bem-feito para mim. Isso que dá escrever em transe -- o santo leva tudo quando vai embora. Se a Soninha tivesse passado aqui em casa ontem, eu pensaria que me surrupiou a porcaria enquanto me dava um daqueles seus beijinhos na ponta do meu nariz. Ladra. Para começo de conversa, não escrevi para ela. Acho. Ou ela pensa que não tenho outras (coisas) em que me inspirar?

Se eu fosse o Verissimo, fazia uma cronicazinha medíocre: O poema perdido. Não que o Verissimo seja exatamente medíocre, mas já vem escrevendo na banguela há décadas. O problema do escritor profissional é que tem de bater ponto e vira burocrata.

Sabia que o Pessoa fez O guardador em 40 minutinhos, em pé diante da lareira, numa só golfada? Franz escreveu A meta em 3 semanas. Não que esteja tentando me ombrear aos gênios, evidentemente. Mas não deixam de ser referências.

O poema perdido

Zé era um reles cachaceiro. Reles, sim, mas perdido de amores por Zinha. Tão perdido, que um dia sentiu algo que nunca sentira antes e empalideceu e teve tremedeira e ficou zonzo e de pernas moles e arrotou, além de outras manifestações fisiológicas menos nobres e dispensáveis.

Em seu surto, pegou uma maço de folhas e uma caneta e desembestou a garatujar, embora fosse um pinguço vagabundo que em sua confusão mental confundia espasmos etílicos com poesia.

Assim que preencheu folhas e mais folhas dos mais loucos versos, limpou a gosma que lhe escorria pela barba e desmaiou. Ao acordar, não sabia onde estava nem que dia era nem seu próprio nome nem o número de sua carteira de reservista. Mas sabia, sabia com toda certeza, que tinha escrito o maior poema de todos os tempos.

Foi olhar na mesa da cozinha, cadê? As folhas tinham sumido. Ah, tentou se tranquilizar, devo ter guardado na gaveta do guarda-comida.

Foi lá: nada.

Zé se pôs a procurar afoito em cada canto. O poema evaporou como se fora manguaça do mais alto teor de pureza! ganiu o desesperado e esquecido pau-d'água. Então foi tomado da mais funda angústia que já enegreceu a alma dum homem e caiu no meio da sala mortinho-pereira-da-silva.

Horas depois sua tia passou em sua casa pra pedir uns tomates emprestados como fazia todos os dias quando ia chegando a hora do almoço e deu com o miserável já em rigor mortis. Na mesinha de centro-esquerda tia Nilcéia avistou um maço de folhas e foi assuntar, bisbilhoteira que era. A primeira folha trazia escrito uma só frase na letrinha miúda de fêmea no cio de seu sobrinho Zé: "O poema perdido". As demais folhas estavam em branco.

"Ai que lindinho!" Nilcéia exclamou. (Ou acho que exclamou, não estou certo se a Nilcéia era dada a esse tipo de faniquito. E a esta altura do dia e com esta garrafa vazia à minha frente, não estou nem jamais estarei certo do que quer que seja.)

O neurótico com pendores poéticos é um chato


Quero hibernar no meu poço de areia movediça. No meu quarto de bonecos fantasiados de bonecos. No meu blog, na minha rua, no meu copo e na minha xícara de café. No meu saco de dores fingidas. No meu bunker antiteorias-a-pensamentos-aéreos.

Predestinada espécie


No início -- quando? exatamente não sei; seguramente neste século --, será assim: você aperta o botãozinho no controle para desligar a tevê e a tevê desliga e torna a ligar instantaneamente.

Algum tempo depois -- quanto? bem, imagino que não mais que alguns dias --, você aperta o tal botãozinho e a tevê se recusa a desligar. Você é obrigado a desconectar a tomada.

Na manhã seguinte -- agora as coisas vão ficando finalmente previsíveis como os boletins do tempo --, você acorda com alguém falando no quarto e pula da cama assustado. Sim, é a tevê. Você se levanta e vai espiar atrás do suporte. A tomada continua desconectada. Mas uau! como é que o aparelho está ligado? Terá uma bateria interna que você desconhecia?

Então você aperta o botãozinho e... nada. Quer dizer, nada, não -- em vez de apagar, a miserável aumenta o volume.

Você mete o dedo no controle do som, empurrando o desgraçado para o zero. O alto-falante berra esganiçado, aparentemente lhe passando uma descompostura.

O volume vai crescendo. Você vai vendo sua paciência se esgotar. Então enfia um indicador em cada ouvido. A bicha berra mais alto. Você torce os dedos dentro das orelhas. A bicha guincha mais alto!

À margem do desvario, você agarra a monstrenga com os dois braços e a atira pela janela. Pois é, um prejuízo e tanto. Cristal líquido. Uma belezura. Lhe custou quatro meses de trabalho nas Casas Bahia. A visão do carnê das prestações lhe martela o cérebro. Mesmo contra a vontade, você se debruça no para-peito e dá uma espiada lá fora -- quer se despedir da disgramada.

Mas cadê a porra?! 

Você escuta a voz duma apresentadora às suas costas. Não, são duas vozes. Agora, três. As vozes se sobrepõem. Brigam entre si, disputando seus ouvidos. É como se vários canais estivessem sintonizados ao mesmo tempo. 

Você continua a apreciar o ponto no chão do quintal onde a tevê deveria jazer estatelada. Sente o rosto empalider mais e mais. E mais. Gira nos calcanhares.

O monstro deu cria. Está rodeado de várias telas menores. De dentro delas nascem controlinhos. Não. Controlões!

Cada cria, por sua vez, bidu! dá cria.

Os aparelhos maiores latem, vociferam, troam. Os menores gemem, ganem e zunem.

Num átimo de lucidez, você tenta correr para a porta. Tarde demais. Está cercado.