Por que gosto de mim

Sei que às vezes faço umas gracinhas autodestrutivas e por isso muitos por aí talvez imaginem que não gosto de mim.

Tenho a declarar a esses — e mesmo outros que por ventura se interessem pelo tema  que se trata dum equívoco. Minha aparente queda para a autodestruição é apenas um recurso  canhestro, reconheço  que uso, entre outros, para me autopromover.

Pois acontece que gosto, sim. E mais  admiro muitas das minhas características.

Outras, chego a abominar, naturalmente. Gosto em mim dessa capacidade de parecer normal.

Mas não é do que tenho de abominável que vim falar aqui hoje. Esse meu lado, sendo talvez bem maior, de certo exigiria mais elaboração e agora estou com um pouco de pressa. Gosto em mim dessa falta de isonomia.

Assim, permitam-me, por ora, que me atenha apenas às minhas características favoráveis e por que gosto delas.

Já que mencionei minha pressa, gostaria de aproveitar o ensejo e começar pela própria.

É com minha pressa que procuro me livrar das missões que a tarefa de viver me impõe ou que acabo assumindo ao longo dos dias, seja por distração, mania atávica de seguir o caminho já batido num movimento mecânico e inercial que me impele avante e à ré sem saber bem por que, ou simplesmente pela ideia algo delirante de que existo para me desincumbir de missões.

Gosto em mim de como não dou importância a avançar ou retroceder. Posso andar para trás sem maiores traumas. Até despencar no abismo ou encostar as costas na parede. Gosto em mim de como posso continuar recuando mesmo quando há mais aonde recuar.

Gosto em mim de como gosto de despencar num abismo sem fundo, gosto de como gosto de não sentir o chão sob os pés, gosto de como a queda parece nunca acabar.

Gosto em mim de como caio.

Um dos atributos de que gosto em mim enquanto caio e recuo é a confusão que me inunda o cérebro quando tento organizar minimamente meus pensamentos para compreender as coisas do mundo e tudo que nele há e habita.

Gosto em mim de como chamo de "coisas" aquilo que não compreendo. Ou aquilo que compreendo mas não sei como chamar.

Gosto em mim de não compreender muitas das coisas que acontecem comigo e à minha volta, que acontecem com os outros e à volta deles. E gosto quando me dou conta de que não me importo se não as compreendo. E gosto mais ainda quando sequer tenho ideia se as compreendo.

Gosto em mim de como repito uma palavra múltiplas vezes quando escrevo, por distração ou por querer, talvez esperando uma hora acertar a palavra justa numa igualmente justa frase, seja por acaso, seja igualmente por querer.

Gosto em mim quando as palavras vêm sem que as chame. Gosto quando sou suficientemente rápido para capturá-las no teclado. Gosto quando elas passam voando e não tomam conhecimento de mim. Gosto quando elas fazem ciranda à minha volta, debochando enquanto me atiçam, sumindo arredias, ressuscitando em duas, quatro, dezenas, dúzias. Gosto quando consigo capturar uma, uma que seja, congelando-a para sempre dentro dum parágrafo, castigando-a eternamente por zombar de como gosto de que elas riam de mim. De como gostam de fingir que se deixam apanhar.

Gosto  ó como gosto  gosto em mim de como falo de mim, gosto em mim de como não falo do que não conheço.

Gosto em mim de como não falo dos infinitos assuntos de que não gosto nem sei falar.

Gosto em mim de gostar da minha fraqueza e não querer ser forte. Gosto em mim de não ter curiosidade sobre como ser forte nem sobre a utilidade da força.

Gosto em mim dos meus fracassos, presentes e passados, e de quanto meus fracassos são meus e de mais ninguém. Gosto em mim da náusea instantânea que me causa a palavra "sucesso". Gosto em mim de abominar o sucesso e os bem-sucedidos.

Gosto em mim de gostar em mim de tudo que me faz único para mim mesmo, sem dar lhufas ao que os outros gostem ou deixem de gostar em mim.

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