Sob o poema da primeira página

O espelho nem sempre a mira
Está encabulado
Ante uma das raras clientes que de um pouco sabem
Desconfiando-se incapaz de refletir uma das faces
Que nunca é a mesma

Ela tem ciência de sua imagem
O espelho, também ciente de que não a enganaria facilmente
Só lhe resta conformar-se:
"É assim desde os tempos em que assim não é"

Ela, que poderia fazer do espelho o que quisesse,
Faria -- mas só tomada de coragem súbita

Poderia arrastá-lo para outras paredes
Outros cômodos e outras casas
Por isso vive ele em estado de prontidão
Mortalmente pálido, de alto a baixo

Não será o espelho que haverá
De impedir que ela seja uma realista
Autossubmissa

Tarde da noite naquele sábado
Ela resolveu se fitar e disse:

"No fim por tudo por pedaços mesmo a vida
A bondade ou a carência tocarão em mim
Não mudarei nada
Não renascerei outra
Nem reagirei ao que me leve
Longe do meu olhar"

Ei, solitário

(Deve ser escrito e lido ao som de Hey Joe com Jimi Hendrix nas costas e Cat's in the Cradle com Harry Chapin à direita de quem olha)

Ei, solitário, aonde foi sua mãe levando uma parte sua?

Ei, solitário, aonde foi sua família e você deixou de ir?

Você está ferido. A derrota se aproxima. Sua mente evapora rumo ao poluído vácuo da noite.

Está perdido. É aquele que se deixou por fazer.

Não sei se chora sozinho. Só sei que chora baixinho.

Pedindo amor e socorro. Súplica agora que seus sentimentos jazem abandonados num dia que não ficou no calendário?

Ei, solitário, seu plano era ser você mesmo mas sobraram só os rabiscos raivosos a Bic no diário?

Aquela noite, sem querer, o escutei assassinando seus desejos.

Aos cochichos, você explicava às paredes, à cadeira e à cama que sua vontade precisava vencer.

E que vontade é essa? perguntei do outro lado do mundo.

Você não respondeu. Mas pude compreender:

Buscar alguém
Ir também

Você não sabe, mas choro sozinho vendo sua vontade triunfar.

Choro baixinho escutando de longe sua solidão se perder.

Levando consigo seu lugar enquanto desconfio que está partindo para sempre.

(Fim de Hey Joe com Jimi Hendrix nas costas, 
 fim de Cat's in the Cradle com Harry Chapin à direita de quem olha, 
 fim.)

Não espere muito

Viver o mundo é tão simples

Basta lembrar sempre que as perguntas que o mundo faz interessam somente a ele mesmo e ele é exímio em confundir os que buscam respostas.

Se você se calar, olhar para outro lado, disser "não, estou bem, obrigado", talvez o afugente.

Descruzamento

Comecei dum cruzamento
Acabarei em mim mesmo

Das origens minhas
A mais inconclusiva é a da semente
Que preservo ativa ainda agora

Não me concluo, sou inerte, enervante
Consequência

Serei apenas o necessário?
Me basto, semente inconclusa?

Fui gerado observador da morte
Cuja única dinâmica é a expectativa
De que relatem sua história

Inconclusiva, inerme  semente
Detentora da força de me incapacitar
Em meu descaminho da solidão

A experiência prova:

Pertenço à órbita da semente
No espaço sem refúgio
Ao desconhecido. Labuto apenas
Tentando fazer que minha cara objeto-de-estudo
Seja identificada
Em 1973

Sob o sol

Não
Reflete a prata solar na noite de negro
O belo noturno igual transparece claro

Arqueia
Os braços ao redor do corpo
Jamais deles se humilha o vento


O resto diurno pode velejar por si
Até onde a luz some da vista

Túneis
Libertos de passagens
Deles para eles convergem pensamentos

Sai
Através dos muros e paredes
Ali capaz de fora se reter

Mas
Não infenso aos braços estranhos
Das salientes cabeças brilham olhos cegos

Risca
Partícula no aparente céu debulha-se
Ao chão para morrer ao pé do universo

Noite
Pelo riso violada pede abrigo
Na solidão do tempo

Exterior
Do concreto ao longo dos anos
Sepulta a memória

Dádiva
Fugaz de necessária fuga
Ao eterno

Martirizante
Descuido
Que da prata removerá o tormento

My Little Dear Eflexe

Ontem não percebeu ninguém.

Não havia ninguém aqui.

Ninguém por perto que estacasse (estacasse, ó deus!), voltando por causa de algo esquecido mas, reflita, com bastante coragem para enfrentar o sinistro.

Pois assim lhe dou uma razão -- não se nasce para morrer, para sofrer. Não se conta com a mente para se tornar burro. Veja: lhe mostro algo que acontece e você quebra, passa, conhece a guerra, se joga.

(Na vida.)

Ninguém que deseje estar aqui (não) está. Não haverá de estar porque sei que estou esquecido, desprovido de consciência suficiente para permanecer sem mudanças.

Ninguém que tenha razão ao morrer, sofrer, nenhum cretino a desejar a glória, zap.

A mente destruída trespassada pela dor mínima. (Vou enterrar minha espada até minha mão tocar tua carne branca e a lâmina te atravessará até teu passado, a verdade, no fundo, sofrimento da incompreensão.)

Haverá então alguém a correr o mundo gritando ter sido capaz de superar a viagem, o avanço flutuante, elevando-se ao status de humano, atemorizando os que o acompanham de cometerem um erro ante o menino-balão que partiu do lugar onde deveria olhar através de si e sentir-se bom, zap.

De tudo um pouco.

Sou meu senhor.

Não tenho mãe, não tenho mulher nem irmã.

Meu ambiente está sob meu domínio, sou limpo.

Medo

Vou deixar um pedaço de papel escrito "medo". Nada mais.

Minha intenção não é intrigar ninguém. Sequer intenção tenho. Bem, ter, até que tenho. Mas é uma intenção contra a minha vontade e esta, vontade, também acho que tenho. E, tampouco, queria ter.

Então deve ser isso. Estou dividido entre uma intenção de fato e uma vontade que não estou certo se sinto.

A intenção, mais lógica, seria mais fácil de determinar. Essa intenção que persigo a que me referi vem se desenvolvendo há anos na minha cabeça. Faz tanto tempo, que, obviamente, nem mesmo me lembro de onde a dita surgiu. Só lembro que nasceu, se é que posso dizer assim, foi crescendo e tomou volume aqui dentro de mim. E, como tal, é um ente meio estranho. Às vezes parece ter vida própria. Sendo uma intenção simples e autônoma, acho que não é seu papel levar em conta meu bem-estar. Ou minhas conveniências. Ou interesses. Parece não estar preocupada com o que poderia me acontecer se eu resolvesse atendê-la.

Pelo que pude sondar até hoje, me parece perigosamente egoísta.

Quanto à minha vontade, não tenho vontade de falar dela.

Mas vou falar do que vão dizer depois.

Vão dizer que eu estava bem. Que até dei umas risadas. Não expressei nenhum desconforto, dissabor, mágoa ou tristeza.

Que parecia até feliz.

Registro entrecortado

[Página 1]

Se eu fosse deixar uma nota de despedida, acho que não daria explicações -- olhem, pensaria, tudo que fiz e deixei de fazer e tudo que fui e deixei de ser já é explicação suficiente.

Acho que em minha nota de despedida seria um pouco sádico, embora não de propósito.


[Página 2]

Deixaria que eles, que nunca tiveram imaginação, se pusessem a imaginar a razão da minha partida. E, da minha parte, me poria a sonhar imaginando que nas cabeças deles passariam os mais inusitados -- para eles -- pensamentos. E imaginar o sofrimento deles ante tão desconcertante ato talvez me...

[Página 3]

...abrisse um sorriso na boca -- mas nada suficentemente drástico para me fazer mudar de ideia.

Então me ocorreria que diante da minha nota de despedida eles finalmente entendessem. E, em me entendendo, viajassem em imaginação de volta para aquele dia em que...

[Página 4]

...ainda teria sido possível tomar uma atitude e mudar o rumo supostamente inevitável das coisas. E talvez então se enchessem duma onda irresistível em que a nostalgia e o arrependimento se misturassem num sentimento insuportável a ponto de serem capazes de entender por que alguém chega ao ponto de escrever uma nota de despedida.