Desparabéns a você
( ? CUSPE ! )
Nesta data ( ? )
Que data é mesmo ?
Você tem direito a três chutes
Muitas felicidades
Muitas
Sim
Muitos anos de quê ?
Vida ?
Blogando 0017
Nasce a
manhã. É tenra. E perfumada. Um pêssego branco-amarelado de pelugem quase
invisível. Resisto a lhe dar uma dentada. Pode estar envenenado.
Nasce a
manhã sob sacudidelas. Sacudidelas dos ganidos dos vizinhos. Danou-se. Deixa os
delírios oníricos pra lá.
Então,
a intolerável conscientização do corpo. "Não
tenho um corpo, sou um corpo." Christopher Hitchens.
Insight dos enfermos atentos. Rezo mentalmente para que no futuro descubram um
jeito de vivermos sem a necessidade desta pequena usina de doenças, fomes,
desejos e dejetos. Provavelmente a primeira raça simbolista do universo.
O
corpo que sou está afogueado de náusea. Os vermes e as bactérias que habitam em
mim vão me tostando para a janta. Peralá, gente. São umas dez horas até a
noitinha. E mamãe não estará aqui, muito menos sua sopa de feijão com couve às
seis da tarde com papai sugando cada colherada para produzir aqueles
frofrozinhos no biquinho abrochado e prudente. Agora vejo tudo. O assado para o
prato principal de domingo sempre fui eu.
Almoço
de domingo, disse e já repito, frango regado a malzbier para os adultos e a
guaraná para as crianças. Quando lhe dava na telha, papai me deixava batizar o
guaraná com um dedo da cerveja preta. E eu já notava quão promissoras podiam
ser as sendas etílicas.
O
papo gastronômico me faz lembrar do estômago subindo pelo esôfago e culminando
no azedo no fundo da garganta, forrando a língua e as bochechas. O vômito vem
sendo cada dia mais constante. A ideia do vômito. Lá se vão décadas a caçar,
devorar, mastigar, destrinchar e engolir. Carne, gordura e osso demais para os
meus dentes frágeis.
Os
ganidos na casa vizinha amainam um tico e posso me virar. Uma camada espessa de
suor reveste minha pele. A banha em que venho sendo marinado. Sim, agora
percebo. O grande prato do almoço do domingo sou eu.
Podia
terminar aqui, com a fome relativamente sob controle. Mas tenho fome mesmo
quando estou sem fome.
Então,
lá vamos nós de novo.
A
fronha do travesseiro e os lençóis estão úmidos. Em alguns pontos, molhados. Me
sinto embebido e ainda faltam tantas horas para a janta.
Em
algum lugar nas redondezas um fedelho de três anos reclama. Reclama de quê? De
ter nascido.
Rezo
para que no futuro nascer seja uma opção. E não mais como funciona hoje, quando
o único remédio à vida é voltar atrás.
Precisamos
duma prerrogativa em que possamos chegar a um ponto de poder discernir a
possibilidade de desistir sem termos já provado as delícias e a tragédia de ser
quem somos e as vastas potencialidades da vida que podemos levar.
Ao
lado da cama, Zezeí suspira e bufa. Desconfio que não esteja tão indiferente
quanto parece aos meus delírios oníricos metafísicos. Pai, me ensina a
ser feroz.
O
guri de três anos que berra algures sou eu. Okay, não precisava ter dito. Mas
quis dizer porque sabia que seria gostoso dizer. Percebeu a retrorreferida
prerrogativa? Posso também iniciar um berreiro bem aqui, bem agora, a que Zezeí
se juntaria com seus afinados uivos de serzinho dionisíaco. Em cinco minutos
atrairíamos bombeiros, ambulâncias, viaturas da PM,
Bombeiros,
ambulâncias, viaturas da PM. Eis um belo titulo para um romance. Mais um na
minha lista de títulos belos para romances. Se nada mudar, logo farei um
romance apenas com essa lista.
Afluem
os carros, camionetes e caminhões com suas sirenes ligadas e seus giroflexes a
girar e seus pneus a guinchar quase tão alto quanto meu coro matinal com Zezeí.
Cercam a casa. Em meio ao escarcéu dos vizinhos, uma voz se impõe. É dona
Angelina, líder das vicissitudes humanas no pedaço. Capto partes de palavras e
trechos de frases: "meio certo", "esquisito", "não se
dá", "esquisitão", "ninguém sabe direito".
Ante
este último delírio matutino, uma última borrifada de suor. Será suficiente
para me juntar à enxurrada de verão que logo se formará na calçada aqui em frente?
Quase empanturrado.
Zezeí
bufa, agora mais categórica. Está acordada sabe-se lá há quantas horas. Mas só
se levanta quando me vê em pé.
Em
pé.
Título
Preciso ser direto agora.
Agora preciso ser claro.
Estou sob um título
Morto.
Vim falar da morte
Vivo.
Proferirei palavras sem mexer
Os lábios
Ventríloco mudo.
Me desonerem, peço,
da minha responsabilidade
de abrir o coração.
Não encostem em mim!
peço.
Estou adverbiamente frio.
Substantivamente livre.
Tão compadecido da raça que foi minha
Sem nunca ter me querido
Sem nunca minha ter sido.
Mas não os frustarei.
Eis a resposta que todos esperam
esta vastíssima espera para saber:
O maior gozo é esquecer.
Agora preciso ser claro.
Estou sob um título
Morto.
Vim falar da morte
Vivo.
Proferirei palavras sem mexer
Os lábios
Ventríloco mudo.
Me desonerem, peço,
da minha responsabilidade
de abrir o coração.
Não encostem em mim!
peço.
Estou adverbiamente frio.
Substantivamente livre.
Tão compadecido da raça que foi minha
Sem nunca ter me querido
Sem nunca minha ter sido.
Mas não os frustarei.
Eis a resposta que todos esperam
esta vastíssima espera para saber:
O maior gozo é esquecer.
Nada desopressora revolta
Caí vítima da maldição
de Lasch. A de que os tatibitates tecnológicos 1) não dão conta da nossa
"alma", 2) nos afastam desesperadoramente dela e 3) fazem de nós
pobres alienados indefesos do mal oculto que guardamos aqui dentro.
Por isso Lasch é um
bom primeiro passo para quem se aventurar a encarar Heidegger.
Dou uma guglada,
caio num site qualquer, bato o olho, o autor tasca que Cultura do narcisismo
está datado, lá vou eu de novo buscar um tico de conforto para este meu
fatigado olhar.
Outra noite sem
sono, dou uma guinada, resolvo rever Caro Francis.
Sofrível como documentário. Não abre cinco por cento de Francis. Ele mesmo reclamava, claro,
entre outros, das limitações do cinema. Noventa por cento da humanidade se
prostrar ante uma tela e Sérgio Augusto dedicar a existência a lançar encômios
sobre os ombros à sétima arte não a eleva muito acima da porcaria que de fato
é. Francis tem tudo a ver com literatura. Diante dela, literatura, seu
jornalismo, seu polemismo, não restam lá muito relevantes. Mais que escritor,
foi seu próprio grande personagem. Mais que criador, desenvolveu uma vida que
considerava minimamente bastante para ele. No fim, e o que interessa, é que
teve de ser o que foi para poder escrever. Mais ou menos como Vinícius teve de
atravessar a existência de pileque para amar. E escrever. E Hemingway e Robert
Lowell. Raros são os daltons.
Mas o documentário
merece ser assistido pela meninada que perdeu a chance de o ler duas ou três
vezes por semana na Folha e depois no Estadão. O maior cronista brasileiro de
todos os tempos. Period.
Paragraph.
Para a molecada que
se interesse, aqui vai uma amostra grátis: “Escrever é a maior satisfação que um autor pode ter, um diálogo íntimo com
um leitor desconhecido. É o que sinto em passagens de Joyce, Dostoiévski e
outros favoritos, a impressão de que eles escreveram aquilo exclusivamente para
mim.”
Seguidas porretadas
dessa veemência/potência/clarividência bem ali no jornal, ao lado de notícias
sobre Sarney, Ulysses Guimarães, Lula. Logo cedinho, durante ou não o café da
manhã à discrição do freguês. Era ser salvo do inferno sob a operação dum
milagre, por milagre, insuspeito. Entrava planando nos céus do pensamento
livre, e puro, reconfortado por saber que havia inteligência, das fartas, neste
mundo de boçais e primitivos que não permitem que nos esqueçamos obsessivamente
de que faltam dez mil anos para o fim da barbárie. E pelos céus prosseguia
flanando, esquecido dos homens sujos, até atingir a última linha da avalanche,
embora igualmente infernal, igualmente celestial. Um palavrório entuchado de
pensamentos e impressões a se atropelar, se comendo pelas pernas, tentando
chegar primeiro que os outros e as outras à glândula gustativa do leitor.
Técnica a se exercitar quase obscena em sua desenvoltura bem diante dos meus
olhos, a se consumar magistral num deboche cordial ao leitor desprevenido.
Acima de tudo, o estilo como fim em si, a imperiosidade de marcar o texto com o
ferro das próprias percepções, que, especialíssimas, não podem simplesmente
verter-se para a banalidade do mundo qual batatas derramadas dum saco de feira
a se rasgar subitamente. A marca estilística não encontrável alhures, o drible
maneiro, e para quem quisesse, imperceptível, à poesia fácil, a esquiva
desconcertante do esperado, e até aguardado, a cisma do leitor de repente
curioso em descobrir de que tipo de destilaria metafísica emanava o feitiço.
Até a renovada descoberta, a cada leitura, de que nas mãos dum mágico a língua
encanta.
O documentário traz
uma pitada de cada Francis frustrante para os que o admiram. Mas parece estar
tudo lá. Dos gatos ao cuidadoso cultivador de amizades ao processo da Petrobras
à morte besta e infame, precipitada por um bando de burocratas. Depoimentos
emocionados de Sonia Nolasco, encômios insuficientes dos vários amigos. As
sempre sacais perorações de Sérgio
Augusto querendo elevar o cinema aos pés da literatura. E as indefectíveis
tentativas de análises sobre o Francis romancista reduzido a incapaz de
construir personagens deveras literários. Essa arenga já corria pelas bocas
quando ele ainda era vivo e deve ser desmentida. Irritante no documentário que
sejam dois de seus amigos, Luiz Schwarcz e Daniel Piza, os mais insistentes em
registrar a falha inexistente, a imperecível mania do brasileiro em achar que
ou o escritor atinge a esfera divina dum Shakeaspeare ou passa a ser digno da
lata de lixo. Piza faz uma tentativa de explicação com a ingenuidade que lhe
era peculiar. Schwarcz, petulante, conta que deu muitos conselhos a Francis que Francis acolheu. Pfiu.
O tira-gosto das
imagens atiçou a fome. Queria mais. E melhor. O grosso se foca na tevê, quase
desinteressante. Mas foi a oportunidade que tive de conhecer o então badalado Manhatan
Connection. Ficamos constrangidos pelos outros três participantes. É visível
o esforço que vira e mexe Francis se impõe de pisar no freio para não achatar
os colegas de mesa à insignificância. Foi aqui que fiquei conhecendo Nolasco e
pude saber como e quanto se amavam.
Faltou a literatura,
ou seja, quase tudo.
Nestes tempos
nauseabundos de corruptos ordinários explícitos e assumidos, de exaltação a
celebridades nulas e glorificação dos bandidos, faltou choramingar pela falta
que um Francis faz. Hei de fazê-lo sempre que me vir compelido a. Este deve ser
o terceiro panegírico que lhe rendo. Não há mal nenhum em chorar pelos valentes
que se foram. Melhor que chorar por causa dos bananas que sobraram.
E pensar que Nelson
Motta, anos ao lado de Francis em NY, não conseguiu aprender que um escritor
que preste não pode ir a público clamando que tá todo mundo cansado do
mensalão.
Se algum escritor
tirou das nuvens a existência-fantasia dos endinheirados, botando-a ao alcance
de nós caipiras enclausurados em nossa casamata feita de casca de ovo, foi ele,
sim. Não apenas, logicamente. Mas Francis descortinou num só rompante o mundo
dos ricaços aos nossos olhos perplexos. Antes éramos inconscientes da abismal
diferença entre nossa vidinha devotada ao trabalho e o glamur (ugh) permanente
dessa gente para quem grana não é problema, problema filosófico talvez maior
que o suicídio de Camus. Eis o muro intransponível. Você pode encontrar produto
equivalente em Proust, com a diferença concebível.
E foi ele quem nos
aproximou dos geniozinhos literários que fazem parte da raça contra a vontade.
Mastigando para nós os caraços que de outra forma nos entalariam na garganta.
Com ele aprendi a conhecer e a compreender pelo menos duas dúzias dos grandes.
Como diz alguém no documentário, isso é generosidade. Você nunca imaginaria,
não é? Para a galerinha empoleirada na frente da fila das esmolas
governamentais, bonzinho é Lula. Que dá dez real a cada caraminguá esfomeado e
dez bilhões a um Eike Batista. De quem Francis também se tornaria amigo do
peito, se vivo, o tipo de incongruência que não tem importância neste caso.
Acabou deixando o
gostinho azedo e macabro de mais uma constatação, entre tantas infindáveis, de
que se há um adjetivo apropriado para a definir a vida, este é “injusta”.
Os últimos momentos
do documentário falam dos últimos momentos de Francis, o processo movido por
diretores da Petrobrás contra ele por, num dos Manhatan Connection, ter
acusado a súcia de manter cem milhões de verdinhas na Suíça. De pronto foi
interpelado pelo mediador do programa sobre provas. O mediador parecia ser provido duma
anteninha vibrantemente sensível a potenciais enrascadas. De fato. Francis não
as tinha. Reclamou com Nolasco de o programa ser gravado às dez da manhã,
horário em que estava sempre deprimido, e suscetível a disparar temeridades. E,
sendo um inveterado cabotino, a receita desandou bem diante da câmara. Os
abutres da estatal souberam como atingi-lo em seu ponto mais fraco, a náusea
que lhe causavam as vicissitudes comezinhas, de que padecemos juntos.
Logo adveio a dor no
ombro, diagnosticada como bursite por seu médico em diagnóstico flagrante e
absurdamente furado. O documentário mostra que tanto Nolasco quanto vários
amigos pediram que fosse ver outro médico, debalde. Morria de medo de médico,
eu, idem. Temos essa inelutável desconfiança desses sujeitos que cospem sua
infalibilidade em nossas fuças a cada consulta, sendo os felizes portadores de
vasta e amedrontadora ignorância. São os hiperespecialistas que desconhecem
absolutamente tudo que não diga respeito à sua hiperespecialidade. Tenho uma
luz-espia que se põe a piscar sempre que me aproximo mais de dois metros de um. E um
alarme sonoro tipo caminhão de bombeiro que dispara a estrebuchar quando o
sabe-tudo desanda a discursar suas pílulas de sabedoria envenenadas de
impostura.
Segundo Nolasco,
Francis começou a se queixar da dor no ombro na sexta-feira e veio a morrer na
segunda seguinte. Quatro dias enfartando. Segundo Nolasco, reclamando de náusea
e do vômito que não conseguia pôr fora. No ínterim, o médico insistindo com a
bursite. Quem leu os artigos de Francis sabe que ele gastou muito teclado
denunciando a mediocriade intelectual e a frouxidão profissional desses pajés
de jaleco.
Imperdível Nolasco
contando da paixão de Francis por Wagner. Que botava pra tocar no último
volume, chacoalhando as paredes do apartamento e gerando queixumes da
vizinhança. Wagner é o compositor dos artistas que não suportam as barreiras
entre a arte e a vida que os medíocres teimam em tentar nos impor.
De repente o
documentário era curtinho e acabou.
Repasso as centenas de
devedês, nenhum reassistível. Exausto ao talo, não dá para ler. Sento diante do
computador, abro um arquivo qualquer dos inúmeros que comecei e parei na
metade.
Mas vamos pras
cabeças.
Domingo à noite.
Noite de domingo. Jesus meu pai pai meu, quanto já sofri numa noite dessas. E
sofri aquele sofrimento injusto, de cabo a rabo me perguntando, oh Lord, que
foi que fiz afinal?
Domingo à noite,
papai diante da tevê, mamãe ao lado de papai, a mana aos pés de ambos, este
vosso little blogger em estado infantil sonhando estar alhures ures ures onde o
Tejo deságua no rio dos Meninos me vendo a boiar na tona desta minha água
isenta de superfície.
Vejam que ainda
estou relativamente são. A essa altura papai ainda não tinha se levantado do
sofá para me recolher em seus braços de capinador dessas ervas daninhas que
nunca desistem de confrontar o valoroso, o ufanista pé de café.
Não ter pra onde se
voltar! Gosh, a fonte de todos os suicídios da roça.
Ter aonde se voltar
e mesmo assim não se voltar porque se voltar não é uma opção.
Você tem um dia que
é o dia do seu equilíbrio e você não pode deixá-lo passar.
Um. Um dia só.
Um em que terá de
dar dois ou três goles na Malzbier semicálida ao mesmo tempo em que mantém os
olhinhos de criança na folhinha de parede.
A infinita liberdade
de ser o que sou.
Quero ver Chico
Buarque acorrentado numa cela nos confins de Cuba por ter ousado uma
cançãozinha crítica ao regime.
Estou cercado de
vários Sabáticos do Estadão.
Maria Lúcia
Pallares-Burke resgata a trajetória do alemão Rüdiger Bilden.
Quem lê essas coisas?
Quem as escreve?
Todos precisamos
comer, sim, está certo.
Não, não há como ser
cem por cento íntegro. E uma pequena corrupçãozinha no dia a dia não há de
fazer mal. Esperavam que na facul eu tolerasse gente que passa a vida remedando
resgate. Fiz de conta, alguns meses. Os resgatistas venceram. Sempre vencem.
Haverá serviço mais
indigente que tentar retomar um texto abandonado? E não importa o tempo do
abandono. Pode ter sido há cinco anos, pode ter sido ontem à noite. Na maioria
dos casos, impossível fisgar outra vez o monstrinho abissal que se esgueira
gaiato sob as águas turvas da indolência herdada do primeiro vagabundo que
preferiu deitar num galho para desfrutar o néctar duma dúzia de pêssegos a
persistir na perseguição ao tatu.
Tenho aqui este
texto abortado em 1998, christ. Em todos, o ânimo evidente com a visita da
inspiração, a alegria de poder criar por minguados minutos que sejam. De
repente o corte do vazio, o vazio do corte. Na maioria, impossível descobrir
por quê. Estava indo tão bem, puta merda. Até minha mastodôntica preguiça
acordar. Nas horas mais impróprias. Lá se foi o interesse no assunto para não
voltar nunca mais. Vou reunindo umas gotas de disposição, releio várias vezes,
procuro me reimbuir, mergulho, me acorrento lá no fundo de respiração presa,
permito que a pressão me leve de volta à tona, imirjo, interiores me dão
claustrofobia, os meus mais ainda, me pelo de medo do que possa enxergar aqui
dentro, de me afogar em meu próprio vômito.
Quantas pecinhas
interminadas, intermináveis, perolazinhas esmeradas, promissoras e
decepcionantes.
Muitos textos,
muitos já perdi. Assim por perder. Sem imaginar onde ou quando. Da maioria
lembro apenas que eram fantásticos. Minha salvação. Provas cabais de que sou um
escritor, mesmo que sem público, ainda que sem livro publicado.
Um dos que mais me
arrependo foi aquele escrito há uns seis anos. Sobre a língua alemã. Devia ter
umas três páginas. Bom tamanho. Nem ligeiro nem profuso. Do texto não sobrou
lembrança, exceto que resplandecia de vigor e veemência. O fogo queimava
insentido. Acabara de descobrir a alma da língua naquele instante e estava
inchado de orgulho e alegria. Conseguira ultrapassar as óbvias tiradas sobre a
pobreza do português ante o alemão, conseguira me abster de apelar ao hoje
clichê de Heidegger de que não se filosofa plenamente senão no idioma que era o
dele. Desliguei o computador e fui dormir satisfeito como poucas vezes houve.
Não lembrei do texto senão três ou quatro dias depois. A lembrança me deixou
feliz. Abri meu arquivo geral em que guardo tudo que escrevo para eventual
revisão final. Sumiu. Comecei a abrir outros arquivos e nada. Horas depois
entreguei os pontos.
Nessas horas só me resta ouvir Bach comendo sopa de grão-de-bico
e me imaginando sob LSD, tentando me conformar que minha existência jamais terá
um auge, que devo gastar meu tempo com o Aurélio, a única leitura digna dum
cara feito eu.
Blogando 0016
Não sou eu quem vem
postando neste blog nos últimos tempos e quero me desculpar.
(Não, não é o caso legítimo
de se desculpar, mas nunca é demais pedir desculpas quando você confessa não
ser quem realmente é.)
((Não, não estou
confessando ser quem realmente não sou. Ou não ser quem realmente sou. Tampouco
ter omitido que não sou quem sou. Ou que sou quem não sou.))
(((Na verdade
(uggggghhhh!), não estou confessando porra nenhuma. Detesto confissões. Odeio
confidentes. Sobretudo os confidentes espontâneos, a quem ninguém está pedindo
que confesse o que quer que seja. Ah deus maldito, por que me fizeste nascer
nesta era dos homens-bananas e seus fantásticos sentimentozinhos de percevejos?
Okay, okay, não sobreviveria dois minutos como carregador de escudo dum sir
qualquer nas Cruzadas, confesso. Não, não estou tentando fazer graça, jesus!
Como me exaspera esta época que nos exige ser simpáticos a cada palavra a cada
segundo a cada ciclo a cada bocejo. God! God! God!)))
Sim, Pessoa já disse tudo
sobre não-ser depois de Shakespeare ter dito tudo sobre não-ser 400 anos antes.
Porra! Qualquer poeta digno
do nome já disse tudo e mais um pouco sobre não-ser, qualquer poeta digno do
nome já disse tudo e mais um pouco sobre tudo que é caro a cada um de
nós, qualquer poeta digno do nome já firmou a jurisprudência das nossas
infinitas fraquezas, ohhhh!!!! quão fracas, quão infinitas, quão pusilânime é
cada um de nós em sua pusilanimidade de inseto, jesus!
Mas nem Pessoa, Shakespeare
nem qualquer outro dos meus santos poetas poderá me substituir agora em meu
papel de admitir — é isso mesmo, caralho! admito, admito, admito (e admito
(e admito (e admito))) — que, ó senhor, não, não sou, não, não sou eu quem
vem postando neste blog nos últimos tempos!
E já não sei se quero me
desculpar.
Já não sei nada.
E quero me desculpar.
Não sei nada.
E não vou me desculpar.
Estrepitosa manhã desta segunda, 11 de novembro
Ah! essas ondas que não arrebentam.
Vêm vindo, vêm se estufando nefastas vêm
Bruxuleando grávidas dos entes misteriosos,
Virulentos que populam esse meu seco mar
Incerto.
Vão indo, vão a ninar em seu medonho colo
O boneco adiposo que herdou as profundezas,
E dos reconfortantes abismos saudoso, vai
Indo a rosnar murmúrios desconhecidos dos
Seus próprios ouvidos.
Ah! arrebentem duma vez, benditas ondas.
Ocupem meus olhos do teu estardalhaço
Devastador.
Liberem incontinenti os glutões à espreita
Em seu ventre
Para que se entreguem enfim à devora.
Eis que o Fantoche Flutuador se exauriu e
Não pode mais boiar na esperança de que
As afiadas presas do mito o exterminem a
Mordiscadas.
E quando desabarem poderei seguir o
Canto que haverá de emanar por detrás
Desta insolúvel manhã.
Vêm vindo, vêm se estufando nefastas vêm
Bruxuleando grávidas dos entes misteriosos,
Virulentos que populam esse meu seco mar
Incerto.
Vão indo, vão a ninar em seu medonho colo
O boneco adiposo que herdou as profundezas,
E dos reconfortantes abismos saudoso, vai
Indo a rosnar murmúrios desconhecidos dos
Seus próprios ouvidos.
Ah! arrebentem duma vez, benditas ondas.
Ocupem meus olhos do teu estardalhaço
Devastador.
Liberem incontinenti os glutões à espreita
Em seu ventre
Para que se entreguem enfim à devora.
Eis que o Fantoche Flutuador se exauriu e
Não pode mais boiar na esperança de que
As afiadas presas do mito o exterminem a
Mordiscadas.
E quando desabarem poderei seguir o
Canto que haverá de emanar por detrás
Desta insolúvel manhã.
Protege de mosquitos, pernilongos, moscas, baratas e formigas mas porém
Se
quero me encarar no espelho ou sem, sou um covarde e minhas palavras fogem
assustadas como se minha consciência acendesse a luz na alta madrugada dum
domingo.
Foi
assim ontem, foi assim antes de ontem, foi assim toda a semana e assim tem sido
há sei lá quantos meses.
Exaurido de tanta covardia,
hoje decidi me enfrentar. Por isso você haverá de perceber que ainda vocifero
tremulamente. E meus braços riscam o ar não com vigor e sim com a tibieza dos
inseguros. E meus pés pousam no chão irresolutos do seu lugar. E é assim que eu
ou você poderíamos prosseguir a encher a linguiça desta fatídica noite de
domingo até as paredes se derreterem num mingau viscoso em que naufragaria e se
afogaria a raça que repudio desde o nascimento.
Mas
porém.
Junto
as mãos numa prece — é esta minha primeira vez e portanto rogo tua
misericórdia.
Não repara nas palavras. Aquelas a que estou acostumado desde criança
não me servem agora, como está tão pateticamente patente. Feito um
supercomputador capaz de um zilhão de cálculos por nanossegundo, meu cérebro
desclassifica e refaz e subtrai e trai e monta e craveja ávido por meu velho
sossego de senhor de mim mas a dissertação — quão horrorosamente óbvio
está — não haverá de resistir ao escrutínio rigoroso da professora.
(Dona
Eva, preciso duma pausa e suplico. Meu copo, digo, minha caneta-tinteiro secou.
É apenas um pecadilho dos sôfregos.)
—
Laranjeira!
A
classe emudece. Todos voltam os olhares e cada um volta o olhar para a fessora.
Ninguém
responde.
—
Laranjeira! Você era minha última esperança!
Dona
Isaltina está com os olhões de coruja pagã pregados na minha cara.
A
classe gira suas cabecinhas para o meu lado.
Por
causa do caroço de manga-rosa entuchado no meu esôfago, renuncio a negar. Mas
porém.
Logo fazer que não com
minha cabeçorra assarapantada.
Então a fessora se dá
conta. (Embora se furte a vestir a carapuça.)
— Vaccari!
Engulo o caroço da
manga-rosa. Sem saliva. Sem afeto.
— Que é que você está
pensando? Hein? Diga! Responda!
Minha longa toda vidinha se
reduz à sensação do intenso rubor no rosto. Não me cabe sequer o direito de
espremer as pálpebras.
— Você
teve a coragem de fazer uma dissertação sobre COVARDIA?
E
dá-lhe pontos de interrogação que poderiam assorear o oceano Pacífico.
As
cabecinhas estão apontadas na minha direção. Algumas se permitem um risinho de
deboche nervoso.
Estou
com a boca qualhada de uísque. Os nervos das pernas e dos braços tensos. O saco
retesado. Fiz vasectomia à toa.
Preciso
sair. Dar uma volta no quarteirão. Se tiver forças, duas. Repisar meus passos.
Rever e me reconfortar com minhas xilogravuras murais que arrasto atrás de mim
desde então. Atentar à reverberação do luar em cada folha nos parcos jardins
dos prédios. As plantas são minhas amiguinhas.
O detetive cego e surdo
Começo
Não.
Início.
Deixaram
pegadas?
Por que
não deixariam?
As
pegadas levam aonde?
Aonde
levariam?
Silêncio,
por favor. Preciso me concentrar.
Ouço
rastros.
Serão
os mesmos?
Sempre
são.
Uns se
distanciam, uns se aproximam.
Vejo.
Sim. Vejo que o autor ama.
Quem?
Bela
pergunta.
Sim.
Quem?
Basta
amar alguém.
Silêncio,
por favor.
Ele
volta.
Ele
avança.
Se
recusando o presente.
Poderá
ser qualquer um nesta sala?
Por que
não?
Não
sei. Parecem tão inamáveis.
Sim.
Parecem. E são.
Que
grotesca coisa de se dizer.
Se a
tivesse dito aos meus doze anos.
A
vítima não aprendeu a enxergar desde então.
Nem a
escutar.
Cego e
surdo e sentimental. Pobre de mim.
Acidentes
Quem
diria
Que
teus dias consistiriam de entradas
Que tuas noites se fariam de partidas
Tua vida, de saídas e chegadas
Quem diria que
serias ora interno, ora externo
Ser de contínuas transições
Agora a evoluir
Noutro instante a dilatar
Até teus inexoráveis encolhimentos
Que serias um
homem por dentro
Outro por fora
Fazendo do ranger da porta
O fundo musical para teu
Grande mise-en-scène de
Coçar
a cabeça
E estalar
os lábios
Antes de resmungar
Quem
diria...
Come, come into my arms
Pai
pai
pai
pai
pai!
pai!
pai!
pai!
pai!pai!
pai!pai!pai!
pai!pai!pai!pai!
pai!pai!pai!pai!pai!
pai!
pai
pai
pa
p
pai
pai
pai
pai!
pai!
pai!
pai!
pai!pai!
pai!pai!pai!
pai!pai!pai!pai!
pai!pai!pai!pai!pai!
pai!
pai
pai
pa
p
A porta
Não posso ficar na sala. Estou só de passagem. Saio
rumo à cozinha. Preciso de algo que deve estar ali. Ao passar pelo corredor,
como já fizera milhões de vezes, dou com uma porta. Que faz aqui esta porta
entre a sala e a cozinha? Não tinha me dado conta. Ou quem sabe tinha mas não
quisera prestar atenção. Pensando bem, me lembro de certas manhãs, ainda
sonolento, em que me passou vagamente pela idéia, “o que esta porta faz aqui?
Aonde dará? Que estranho, aparecer assim de repente...”
Mas também não dou muita bola. Você já pensou
quantas coisas estranhas passam por sua cabeça sem que queira se dar conta?
Milhares por hora, milhões por dia. Detalhezinhos a que não vale a pena atinar
mesmo. Ou então grandes, imensas aflições, medos, paúras e paixões em que você
não se atreve a mexer para não acordá-los. Monstrinhos e monstrões que vicejam
aí dentro, como se você fosse uma incubadora alienada.
Não, não se perturbe. Estamos apenas falando deles
– não com eles. Que durmam. Existem para isso. Você sabe que estão lá, em algum
lugar do escuro, sossegados, inócuos. Talvez até mesmo sonhando com você... E
sabe que tudo estará bem enquanto estiverem assim.
Mas tem dia que faço tanto barulho, que não sei
como não acordam! Talvez apenas finjam.
Sinto um frio no estômago.
Passei noventa e nove por cento da minha vida
avançando, e retrocedendo, pé ante pé, tomando todo cuidado para não pisar num
graveto, numa folha seca, desviando dos abajures para não derrubá-los, evitando
tropeçar num chinelo. Nem respirar direito respirei. Quantas vezes segurei o
diafragma para não acordá-los. Estômago apertado. Punhos crispados. Cabisbaixo.
Angustiado de aflição de despertar os desgraçados. Noventa e nove por cento da
minha vida assim.
E esse tempo todo eles acordados!
Não pode ser. Estou viajando, como tão
deliciosamente diz a moçada hoje em dia. Viajando sem destino. Às vezes
acontece. Começo a pensar, e penso que estou pensando, mas logo vejo que não,
estou apenas viajando. Mais que só às vezes: freqüentemente. Não! Já que estou
me confessando, vou desembuchar duma vez: sempre! Não penso; deliro,
tergiverso, flutuo, afundo, flúo, devaneio, desatino.
Há quanto tempo não viajo de verdade. Quem dera
poder, deixá-los trancados em casa. Mas também não posso. Tenho minhas coisas
para cuidar. Minhas coisas. O que seria de mim sem elas? O modo como arrumo os
livros na estante, como alinho os sapatos na prateleira, como deixo
displiscentemente as almofadas cair no sofá dando a impressão de que estão
desarrumadas (uma desarrumação, mas, que faz parte dum todo). Estas são minhas
coisas. Orquestradas. Como viver sem elas?
Minha orquestra de músicos silenciosos. À espera. O
que me importa é que estejam aqui. Tocarão o dia que eu morrer. Sim, é para
isso que existem. Assim como eles. E se eu sair em viagem, quem ficará aqui
para escutá-los? E a casa, meu pai! Quem ouvirá os discretos ruídos cotidianos
da minha casa? O ranger das portas, o tiritar das venezianas, o estalar da
mobília, o ecoar nas paredes, o gorjear dos pássaros lá fora, o roncar dos
carros na rua. Quem estará aqui para ouvi-los? De que serve um ruído se ninguém
o escuta?
Não foi esta a razão que levou os dinossauros à
extinção, afinal?
E esta porta. Que fazer com ela?
Virgem umbral. Jamais penetrado. Será meu fatídico
hímen? Por que logo uma porta? Bem que podia ser um desses trastes que guardo
no armário. Um que fosse menos sugestivo, não se prestasse a representações,
não desse margem a tantas metáforas quanto a porcaria duma porta. Que faço,
afinal?
Mesmo sem abri-la, mesmo sem jamais tê-la cruzado,
sei o que oculta.
O outro lado.
Se decidir abri-la, provavelmente darei com uma
escada. Uma escada descendente, pois todos os meus caminhos levam para baixo.
Apenas os primeiros degraus estarão à vista, claro; o restante certamente se
perderá na penumbra lá no fundo.
Devo descer? Ainda estou empunhando a maçaneta,
representando a mim mesmo o Grande Indeciso no eterno, torturante auto-teatro
que estou inexoravelmente condenado a encenar. Vou? não vou?, me pergunto
frivolamente, sabendo que minha decisão já estará tomada e nada me fará
desistir.
Nunca desisto. Não por qualquer razão mais nobre
nem por um senso de persistência. Nunca desisto porque sou curioso demais. E
aprendi que só os patéticos desistem. Todos os caminhos que tomei em minha vida
segui até o fim, só para ver aonde dariam. Mesmo quando sabia que estava no
caminho errado. Agora não será diferente. Ainda mais em se tratando duma porta.
Com tantas possibilidades.
Dou um passo, auscultando a escuridão lá embaixo.
Pena que não esteja sendo filmado. Haverá uma
câmara oculta neste negrume?
Dou o segundo passo e cruzo. Definitivamente. Já
não há volta. Daqui não retorno, haja o que houver.
Ponho-me a descer. Cauteloso a princípio, logo me
acho familiarizado com o lugar e meus movimentos adquirem mais desenvoltura.
Aos poucos meus olhos se habituam ao escuro – e não
consigo evitar pensar na facilidade com que sempre me habituo ao escuro – e
começo enxergar algumas formas.
Embora ainda indistintas e incolores.
Prossigo por dez, quinze minutos.
Como foi possível existir tão longa escada dentro
da minha casa sem que soubesse?
Durante todo o tempo estou ciente e cioso das
minhas velhas amarras internas, os nós, apertos e embaraços que me protegem
desde que existo.
Vou escutando nada além dos meus próprios passos,
até que começo a ouvir algo ao longe. Parece um vozerio. Um vozerio abafado.
Que decresce à medida que avanço. E quanto mais avanço, mais distintas ficam as
vozes e mais baixo falam.
Como se não quisessem se fazer ouvir.
De repente o som das vozes cessa e o farfalhar de
roupas e ruídos indistintos de movimentos discretos se realça no silêncio. Não
estou só.
Não estou só.
Curiosamente, sinto um certo conforto e ao mesmo
tempo espanto por não ter me aterrorizado. Pela primeira vez, penso, não quero
saber o porquê de estar onde estou ou de fazer o que faço. Pela primeira vez
não quero duvidar, especular, negar. Estou em casa e isso basta. Mesmo que
nesse... nesse...
Pelo farfalhar de roupas percebo que estou rodeado
de... pessoas? Entes? Fantasmas?
– Bem-vindo! – uma voz exclama em algum lugar na
escuridão.
Não me assusta a repentina pergunta. E, com calma
suficiente para examinar em mim mesmo como meus sentidos estão reagindo,
verifico que até agora estou bem.
Estou bem.
– Obrigado pela acolhida!
– Estamos com presença de espírito hoje!
– Sou sempre bem-educado. Sobretudo com
desconhecidos.
– Não sou exatamente desconhecido...
– Nos conhecemos de onde?
– Exatamente daqui.
– Nunca estive neste lugar antes.
– Esteve, sim. Vem aqui todos os dias.
– O senhor deve estar me confundindo...
– Como sabe que sou homem?
– Bem, a voz...
– Posso muito bem ser mulher.
– Nunca se sabe.
– Hm, estamos bem-humorados hoje.
– Sempre estou. Mesmo nestas circunstâncias.
– Não parecia muito, lá em cima.
– Lá em cima onde?
– No alto da escada.
– Ah, estamos lendo pensamentos hoje!
– Aliás, parecia deveras... digamos... acabrunhado
enquanto descia a escada.
– Sim. Sempre acontece quando fico sozinho com meus
pensamentos.
– Já esperava essa sua clássica resposta de quem
não conhece sequer o próprio rumo.
– Ninguém conhece o próprio rumo.
– Mais uma clássica afirmação dum desorientado. Os
membros da maioria sabem aonde vão.
– Pensam quê.
– No fundo, você os inveja. Queria saber em que
direção está indo, ter noção dos pontos cardeais, saber onde é o leste, o
norte, de que lado nasce o Sol.
– Bah! Essa é a clássica idéia que fazem os
pragmáticos a respeito dos que não o são. Você é que está confuso por eu não
ter indagado que lugar é este nem quem é você.
–Reles sofisma.
– Gente como você acha que sabe tudo. Pior: que
precisa saber tudo.
– Clássica resposta de quem não sabe nada!
– Clássico isso, clássico aquilo. Confunde dar
sempre o mesmo padrão de resposta às dúvidas com saber. Isso é apenas ser cego.
Aliás, ser cego cai bem para quem vive na escuridão.
– Que escuridão?
– Ora, esta escuridão! Que outra seria?
– Mas aqui não há escuridão alguma. Ser incapaz de
enxergar não significa que o mundo é escuro.
– Bah! Nada mais que frases de efeito. Aplicar um
belo bordão a cada incógnita que lhe surge pela frente não quer dizer saber.
– Estou vendo que o comprade não resiste a muita
pressão.
– A ironia é a arma dos mentirosos.
– Vejo também que a diplomacia não é um dos seus
fortes.
– Que mais poderia esperar de quem vive no mundo
das sombras? Com licença.
Dizendo isso, retomo resolutamente minha caminhada
à frente, mesmo sem poder enxergar coisa alguma.
De repente, a escuridão desaparece e me vejo na
cozinha. Abro a geladeira e apanho uma latinha gelada. Que bom ver tudo às
claras de novo. Embora o que eu queria de verdade era pegar a fôrma de gelo e
me empanturrar de uísque. Mas o médico proibiu, o miserável.Mas o elemento evadiu-se numa fuga de Bach
O gari varre a guia coberta de poeira acumulada, lixo e cocô de cachorro
para não pensar na vida
O vigia do prédio joga um game no celular, ergue a cabeça para olhar o trânsito, responde ao bom-dia de alguém
para não pensar na vida
Os peões da obra de trinta andares, enquanto carregam, puxam, empurram, martelam e serram, vão trocando berros entre si
para não pensar na vida
O motorista de táxi passa olhando para a frente, mudando a estação do rádio, resmungando do trânsito
para não pensar na vida
Vou caminhando pela calçada
alheio
ao mundo
a mim
a mim
ao mundo
alheio
para não pensar na vida
O vigia do prédio joga um game no celular, ergue a cabeça para olhar o trânsito, responde ao bom-dia de alguém
para não pensar na vida
Os peões da obra de trinta andares, enquanto carregam, puxam, empurram, martelam e serram, vão trocando berros entre si
para não pensar na vida
O motorista de táxi passa olhando para a frente, mudando a estação do rádio, resmungando do trânsito
para não pensar na vida
Vou caminhando pela calçada
alheio
ao mundo
a mim
a mim
ao mundo
alheio
Blogando 0015
Hoje cedo dois pontos. Estou
entrando querendo sair da padaria do Lá travessão. Não se preocupe três pontinhos.
Sô ainda não acordou. O balcão está
a cargo de dona Jussara, que outro dia me pediu para chamá-la só de Ju e fiz
que não registrei. Mais uma a fim deste titubeante, precavido blogueiro, não.
E, jesus, tem o Lá ponto. Que me fura sem toscarejar se eu crescer os olhos pra
cima da sua digníssima consorte.
Não que Ju, i.e., dona Jussara seja
de menoscabar dois pontos. Tem a bundinha mais arredondada do universo, que Sô
herdou sem tirar nem... pôr. E digo bundinha não por ser piquitita e sim pela
mais perfeita concepção e relação projeto X finalidade. Tamanho ideal próprio
para as funções previstas por deus.
Deix'eu pregar os olhos em outra
coisa. Acho que o Lá está me sacando aperreado, já não basta a filha minha?
Vodka, stein, rum, dreher,
balla12...? Dona Jussara sorri esperando, c'uma força irresistível de quinze
mil newtons arrastando meus olhos para o risco entre as mamas nutritivas e
mimosas domadas cheias de si sobre as semicopas do sutiã azulzinho-mar
emolduradas pelo decote petulante, razões de viver do Lá. Pombas, DJ nunca
tinha me magnetizado tanto assim, que foi que houve?
As opções ofertadas assim todas
juntas me desalinha os sentidos, digo, o pensamento por uns instantes. Fico
escolhendo mentalmente.
Todas.
O sorrisinho de dona Jussara se
inaugura num escancaramento, expondo seus dentões desconjuntados de cabra
silvestre mastigadora de coraçõeszitos de franguinhos carentes de carícias.
Sério?
Nunca experimentei, dona Jussara.
Acho que vale a pena tentar.
Num copo de cerveja?
Façamos de conta que é um aperitivo
normal.
Ela bota um copinho de pinga no
balcão e vai preparando a efusão, digo, infusão em dosesinhas imparciais se
colorindo num marrom amarelado pastel.
Dou um golinho, fecho os olhos. A
muralha da comporta arrebenta e um córrego-do-ipiranga deságua mundo abaixo,
arrastando num segundo a habitual leva de mesas de cozinha, a cadeira que era
de vovô, o velho jogo de sofá da Santa Catarina e outras tralhas. Desta vez
carrega até meu querido Chevrolet vermelho que pintei de azul e escondi e nunca
mais achei.
Reabro os olhos. Dona Jussara foi
para as mesas servir pingado com pão na chapa. Meu anjo-demônio está em pé ao
meu lado.
Me dê um nome, exige.
Já disse que não.
Então um sexo.
Hm-hm.
Por que me maltrata assim?
Porque gosto de judiar.
Dou o segundo golinho. O licor buliçoso do rio-amazonas esconde a sujeira do mundo visível.
Só desta vez.
Vou pensar.
Pensou?
Um arrebatamento. No mínimo dez
minutos.
Não pense.
?
Não pensou?
Entorno o copinho dentro dos lábios.
Ele(a) sumiu. A(o) filha da puta.
Me deixando com minha febre dois
pontos.
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