Fato


A ideia veio do nada e se aboletou em cima de outros pensamentos e os pensamentos que já não eram sólidos se pulverizaram na névoa mental como se nunca tivessem existido.  E o cataclisma me deu vontade de escrever. E escrevi:
Imagino quem me imagina.
A frase parecia saída de algum ponto entre a medula, o cérebro e a próstata. Não me senti canceroso, burro ou broxa. Por um instante eterno me livrei das algemas intelectuais da inibição e das malditas amarguras.
Quem diria? Imagino quem me imaginas. (Desta vez, um “s” no fim.)
No instante eterno esqueci que sou faminto e o desarme espantou as costumeiras imagens que me ocupam o córtex em forma de pencas de linguiça penduradas em ganchos e postas de filé-mignon expostas numa vitrine de balcão dum açougue, a sopeira cheia quase até a boca com a sopa de feijão no fim da tarde cálida, a germinação incontrolável de garrafas de Johnnie Walber Blue na mina miraculosa na minha adega, o desfile de faces de anjos com sorrisos acolhedores abertos só para mim,  farta torrente de palavras que me deram o dom de explicar ou simplesmente descrever qualquer pensamento inarticulável que me estoure na cabeça antes que se desfizesse em confetes semânticos no carnaval das emoções.
Surgiu há 3, 4 minutos e já  ia para o ralo do sono ou outro dos infinitos sumidouros de que sou feito, juntamente com bilhões de outras ideias... se não tivesse teimado em salvá-la.
Meu purgatório se refez num jardim das delícias sem que precisasse estalar os dedos ou esperar acordes duma harpa. A vida que corria acima das nuvens a uma distância intransponível do meu mundo antigo agora jaz, a apenas um passo, inerte, inerme, dominável – bastava estender a mão.
Quando surgiu, me empolguei – parecia  prometer uma saída.
Eis que então pensei na mais impensável delas: para que preciso duma saída afinal? Pretendo sair de onde? Aonde pretendo ir? Por que nunca me ocorreu que fujo desde que existo?
Por ela exterminei outras que borbotavam atrás no germinal inestancável.
Anjos em sôfregas cópulas levantam nuvens de partículas sussurrantes que entopem meus olhos enquanto minúsculos demônios escarlates miam em frondoso coral e dois braços roliços e macios me embalam e uma voz feminina gutural e benevolente canta para me inspirar.
Não me conheço, não sei quem sou, não sei por que estou aqui, não sei quais são meus propósitos, se é que tenho algum.
A voz sussurrante sugere que faça de minhas dores minhas amigas.
Pensando bem, imagino quem me imagina.
Por que já não faz tanto sentido?
Era ou não meu remédio?
Imagino quem me imagina.
Por que sou tão volúvel?
(Não se preocupe, não vou enumerar as milhares de razões por quê.)
Não darei conselho algum – não sou de dar conselhos, não gosto que me deem conselhos.
I-m-a-g-i-n-o-q-u-e-m-m-e-i-m-a-g-i-n-a.
Com a língua entre os dentes, misto de raiva, despeito, ternura e transcendentalismo.
Imagino quem imagina.
Por um instante eterno.

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