Ele voltou II

Cabo conectado. Acorda com o zumbido, o relógio eletrônico de plástico apitando sete e meia. Levanta, os pés dão um passo e para, indeciso se continua ou volta para a cama. Pelas frestas da persiana sente o brilho do sol. O corpo fica instantaneamente inquieto, o sono se dissipa. Estamos no verão, tenta-se pensar. Os olhos olham o livro de 230 páginas que deixou no criadomudo antes de dormir ontem. Apanhamos, abre-se ao acaso. Página 115.
Tereza dorme ao lado e acorda.
— Ligue o computador e envie os emails.
Ela liga e mexe o mouse e o protetor de tela desenvolvido por Giraldi, pulverizando randomicamente citações de grandes escritores na tela sob efeitos plásticos belos, fiction is obliged to stick to possibilities. Truth isn't, caracteres verdourados em fundo negro, desvanece. A caixa postal de Gardini está carregada, diz, os desenvolvedores não pensaram nisso.
É Foda quando você quer enviar um email a clientes registrados.
 Alguns têm conteúdo ao mesmo tempo orgânico e fotoelétrico. Sabe o que isso quer dizer? Que podem converter impulsos elétricos em luz e vice-versa. Uóxito. O investidor imagina o potencial daquilo.
— Tenta de novo.
— Semana passada enviamos emails a todo mundo que está em nossa mailing list e anunciamos a disponibilidade dos nossos serviços e agora vejo que todos eles voltaram quase imediatamente.
— O provedor apresentou algumas dezenas de razões técnicas, de natureza variada, entre elas  conta inexistente, acesso ip do país negado, nome do hospedeiro ou domínio não encontrado, destinatário inválido, aparentemente este email não foi solicitado, esta mensagem tem cara de spam, mensagem recusada por restrições ao conteúdo, não existe caixa postal com este nome, não listado no Domino Directory.


 O email continua. A demissão do Neves foi um balde dágua fria nas pretensões da empresa, pois lançou toda a diretoria na escuridão. Neves era o único que havia acompanhado a pesquisa do começo ao fim. O cara tem mãos mágicas, nas  palavras dum dos pesquisadores. Era uma verdadeira dádiva para a Dorusa, um presente de Deus. Mas os cretinos jogaram fora. O que ele fez? Associou-se ao nosso amigo G, levou toda a papelada que tinha juntado para o laboratório dele. No dia 10/5 deram início à nova pesquisa. A Dorusa, claro, conseguiu levantar uma boa quantidade de informações antes que Neves e G pudessem deter a invasão, mas o cerne das descobertas ficou intacto, o que é igualmente claro — os biguemaqueanos não são páreo para os nossos dois crânios. De qualquer forma a Dorusa logrou alguns tentos e amealhou provas suficientes para pelo menos abrir um processo contra Neves por roubo de documentos altamente confidenciais. Além dos métodos invasivos contrataram um investigador para seguir o cara, até que puderam traçar uma ligação entre ambos. A mente acha porém que isso não é motivo para preocupação.
O investidor clica no botão Responder e começa a digitar.
Pergunta 01: por que Gardini admitiu ter surrupiado os documentos se até então ninguém sequer havia desconfiado dele?
Pergunta 02: as conclusões do trabalho dele de absolutamente nada serviriam sem os dados complementares desenvolvidos por G e que nunca saíram do laboratório de G. Como a Dorusa fez a conexão?
Pergunta 03: Os resultados obtidos por Gardini eram de interesse para todo mundo e trariam prosperidade a toda a indústria de software. Quando tentaram fazer engenharia reversa nos protótipos dele, os técnicos da Dorusa sabiam — e muito bem — que o sistema de G detectaria a invasão. Com isso a Dorusa entornou o caldo e a Porra degringolou e a corda quebrou do lado dela mesma. Por quê?
Pergunta 04: Com uma distribuição gratuita e sem cadastramento o programa atingiria cada um dos computadores existentes no mundo. Por que a Dorusa se recusou a aceitar?



Desmontando estrelas do nosso céu. Seria bom começar por G. Éramos felizes quando nos reuníamos em família, essas coisas simples. Saímos da estrada no km 25. Precisamos de novas doutrinas, dizemos. Essa área não é diferente de qualquer outra. Ninguém está mais interessado em suas  motivações depois que elas se tornaram públicas. Sim, faz sentido, ele diz.
Gardini fora isentado de responsabilidade. Afinal a participação dele se limitara ao desenvolvimento das inovações no terreno da química orgânica e sua integração com o computador de Giraldi.
— Vamos parar e tomar uma cerveja — ele diz.
Dirijo mais alguns quilômetros até encontrar um posto de gasolina no km 25. Estaciono, descemos, esticamos os braços para o alto, relaxamos. As pernas entram na lanchonete, pocilga macaquita salvessalve. Sentamos em duas banquetas que são um desafio às leis da física, diante dum balcão que é uma cusparada na cara da higiene. O atendente leva vários minutos para girar o pescoço em nossa direção. Quando o faz finge que não nos vê e prossegue em sua lida de encadir ainda mais o ambiente em que vive esfregando um pano imundo no chão. O nossossanchopança dá um assobio e o rapaz por fim decide vir até nós, insolente, desafiador.
— Uma brama.
— Está em falta.
— Ai que drama.
— É a alta.
— Então serve umescol.
— Servi a última indagorinha.
—  Triste terra do futebol.
— Esta aqui também é boazinha.
Se abaixa, abre a porta do balcão, e quando se levanta tem uma garrafa na mão.
— Não conhecemos essa marca — o nossossanchopança diz.
— Carece conhecer não. É boa igual às outras.
—  Parece falsificada. Veja aqui, o nome e o endereço da fábrica estão apagados.
— É a mais vendida em noviorque — o balconista diz.
O nossossanchopança põe-se em guarda. Confiança nunca foi seu forte.
— Este rótulo tem algo de errado.
— Você está sendo paranóico demais — dizemos.
— Uma das poucas qualidades que temos é a capacidade de aprender com a história. Veja este emblema. O que faz a fachada duma universidade num rótulo de cerveja?
Os olhos olham. É de fato o prédio principal da universidade de Oxford. Fora lá que Giraldi apresentara pela primeira vez sua série de estudos sobre a conversão de cristais orgânicos em componentes eletrônicos.
— Vão tomar a cerveja ou não? — o atendente pergunta.
Rápido feito um felino, o nossossanchopança atira as duas mãos sobre os braços do rapaz e o imobiliza.
— Vamos. E você também vai.
O sujeito começa a sedebatertentandoescapar.
— Qual é? Tá maluco?
Apanhamos a garrafa, depois um abridor, extraio a tampa. O nossossanchopança sujeita os dois braços do rapaz às costas. Estendo a mão para o rosto do sujeito e prenso seu nariz  entre nosso polegar e a falange do indicador para que ele não possa respirar. Ele é forçado a abrir a boca e o nossossanchopança lhe enfia o gargalo da garrafa até a garganta. Quando tenta soltar-se o atendente acaba engolfando uma grande quantidade do líquido. O nossossanchopança então deixa ele se desvencilhar. O rapaz leva a mão à garganta e cai de joelhos. Nos olha resfolegante, lágrimas escorrendo pelo rosto.
— É, tá em falta — o nossossanchopança diz.
— Ai que drama — dizemos.
O rapaz cai morto. Filho da puta dum paraguayo.
O nossossanchopança tira sua máquina fotográfica do bolso da calça, mira o defunto e cliqueclica. Apanha garrafa de cerveja e fotografa também. De outro bolso retira um frasco para exame de urina e coleta uma amostra da cerveja.
— Isso fará bem ao ego de Giraldi.

— Que mais quer que eu invente? — Giraldi pergunta.
— Uma milquepílula. Para capacitar a mulher a produzir leite e a gente poder mamar enquanto fode.
— Pensamos que fosse pedir uma uísquedrágea.