O telefone toca. Perguntam se aqui mora o
filho do Roberto.
— Ele mesmo.
— Ele quem?
— Filho do Roberto.
— Como vai?
— Quem está falando?
— Um amigo. Do Roberto.
— Papai não tinha amigo.
— Tinha, sim. Você que não sabia.
— Que o senhor quer?
— Pouco antes de morrer seu pai me pediu
que lhe telefonasse para explicar algumas coisas.
— Eram amigos desde quando? De qualquer
jeito, não estamos interessado.
— Ele me incumbiu de dar este telefonema.
E não éramos amigos. Éramos algo mais.
— Como assim? Tinham um caso?
— Não, não. Nada disso.
— Ele contratou o senhor?
— Bem… pode-se dizer que sim.
— Agente literário?
— Sim. Mas não a trabalho.
Papai nunca saía de casa, quando saía
nunca saía da nossa rua, quando saía nunca saía da nossa cidade. Não falava do
que não conhecia, ao contrário da maioria dos gerílsones. Affelandrepublik, por
exemplo, dizia. Essa gente dá muito palpite, se irritava. Vida isso, mundo
aquilo, ser humano isso, deus aquilo, alma assim-assada, cães ladram à noite
porque têm espírito guardião, caralhoaquatro. Boquirrotos precisam se assegurar
de que todas as ilusões que lhes passam pela cabeça não são sinal de loucura.
Somos mijadores mentais, ciclicamente marcando nossos perímetros internos com pensamentozinhos
familiares para afastar e reprimir delírios que ameaçam invadir nossa lucidez.
Precisamos permanentemente ser senhores das nossas próprias faculdades, o que é
impossível, ao contrário do que a maioria pensa. Papo de psicanalha, que foi o
que aprendemos com a idade. O tempo todo estamos identificando e catalogando e
classificando e rotulando o que se passa dentro de nós, arrumamos tudo
bonitinho em prateleiras fantasiosas, tudo sob controle, cada ideazinha em seu
devido escaninho, saudade, onde está a saudade mesmo? aqui, saudade dos primos
e da casa na praia, um chega pra lá dor, que aqui é só a saudade. Se você
soubesse que é saudade não aguentaria. Hoje com o computador tudo é bem mais
maneiro, entre na internet e digite www.pai.com e está tudo ali, todos os seus
amores e suas dores, as mais recônditas lembranças que ele podia guardar, o
primeiro olhar apaixonado que dirigiu a uma mulher. Tudo a mesma bosta,
exegetas píos maníacos informáticos espíritas. Colocamos nossas dúvidas no
papel ou em pratos limpos ou nas estrelas e xibum, o milagre se faz. Nisso os
intelectuais são os piores, pois têm mais recursos e maior raio de ação, mais
poder de concretizar as sandices que engendram, estão mais próximos do poder
real que, ao contrário do que todos pensamos, não é a grana e sim a
prerrogativa de alcançar além das certezas que a lida cotidiana nos impõe, e
por isso mesmo são os mais perigosos, os que maiores tragédias infligem sobre o
resto de nós, sempre foi assim, somos todos obrigados a olhar o mundo com os
olhos deles, tudo gira em torno deles, todos têm inveja deles porque ditam
nossos rumos, os demais, devotos do sobrenatural que acham que devemos todos
nos render ao desconhecido, esses são pateticamente fracos e fora, claro, artistas,
ou melhor, o artista, o genuíno, aquele que realmente tem uma alma que sabe ser
sua conexão com a imponderabilidade da vida através da qual escuta as vozes que
lhe ensinam sentir ouvir olhar descrever falar com o filho, tesoro mio, os
italianos têm a mais bela forma de chamar seus bebês, ascolti a quello che
devono dire, se quer reduzir tudo a essa comunhão primária que desenvolvemos
hoje com os prazeres carnais em nossa cultura biguemaquiana, tudo bem, a
maioria não aspira a outra coisa, nos saciamos de lixo para matar o espírito, eis
o que fazemos, matamos o espírito.
— Foi ele quem lhe deu nosso telefone?