Ele voltou IV

continuação de Ele voltou III

O telefone toca. Perguntam se aqui mora o filho do Roberto.
— Ele mesmo.
— Ele quem?
— Filho do Roberto.
— Como vai?
— Quem está falando?
— Um amigo. Do Roberto.
— Papai não tinha amigo.
— Tinha, sim. Você que não sabia.
— Que o senhor quer?
— Pouco antes de morrer seu pai me pediu que lhe telefonasse para explicar algumas coisas.
— Eram amigos desde quando? De qualquer jeito, não estamos interessado.
— Ele me incumbiu de dar este telefonema. E não éramos amigos. Éramos algo mais.
— Como assim? Tinham um caso?
— Não, não. Nada disso.
— Ele contratou o senhor?
— Bem… pode-se dizer que sim.
— Agente literário?
— Sim. Mas não a trabalho.
Papai nunca saía de casa, quando saía nunca saía da nossa rua, quando saía nunca saía da nossa cidade. Não falava do que não conhecia, ao contrário da maioria dos gerílsones. Affelandrepublik, por exemplo, dizia. Essa gente dá muito palpite, se irritava. Vida isso, mundo aquilo, ser humano isso, deus aquilo, alma assim-assada, cães ladram à noite porque têm espírito guardião, caralhoaquatro. Boquirrotos precisam se assegurar de que todas as ilusões que lhes passam pela cabeça não são sinal de loucura. Somos mijadores mentais, ciclicamente marcando nossos perímetros internos com pensamentozinhos familiares para afastar e reprimir delírios que ameaçam invadir nossa lucidez. Precisamos permanentemente ser senhores das nossas próprias faculdades, o que é impossível, ao contrário do que a maioria pensa. Papo de psicanalha, que foi o que aprendemos com a idade. O tempo todo estamos identificando e catalogando e classificando e rotulando o que se passa dentro de nós, arrumamos tudo bonitinho em prateleiras fantasiosas, tudo sob controle, cada ideazinha em seu devido escaninho, saudade, onde está a saudade mesmo? aqui, saudade dos primos e da casa na praia, um chega pra lá dor, que aqui é só a saudade. Se você soubesse que é saudade não aguentaria. Hoje com o computador tudo é bem mais maneiro, entre na internet e digite www.pai.com e está tudo ali, todos os seus amores e suas dores, as mais recônditas lembranças que ele podia guardar, o primeiro olhar apaixonado que dirigiu a uma mulher. Tudo a mesma bosta, exegetas píos maníacos informáticos espíritas. Colocamos nossas dúvidas no papel ou em pratos limpos ou nas estrelas e xibum, o milagre se faz. Nisso os intelectuais são os piores, pois têm mais recursos e maior raio de ação, mais poder de concretizar as sandices que engendram, estão mais próximos do poder real que, ao contrário do que todos pensamos, não é a grana e sim a prerrogativa de alcançar além das certezas que a lida cotidiana nos impõe, e por isso mesmo são os mais perigosos, os que maiores tragédias infligem sobre o resto de nós, sempre foi assim, somos todos obrigados a olhar o mundo com os olhos deles, tudo gira em torno deles, todos têm inveja deles porque ditam nossos rumos, os demais, devotos do sobrenatural que acham que devemos todos nos render ao desconhecido, esses são pateticamente fracos e fora, claro, artistas, ou melhor, o artista, o genuíno, aquele que realmente tem uma alma que sabe ser sua conexão com a imponderabilidade da vida através da qual escuta as vozes que lhe ensinam sentir ouvir olhar descrever falar com o filho, tesoro mio, os italianos têm a mais bela forma de chamar seus bebês, ascolti a quello che devono dire, se quer reduzir tudo a essa comunhão primária que desenvolvemos hoje com os prazeres carnais em nossa cultura biguemaquiana, tudo bem, a maioria não aspira a outra coisa, nos saciamos de lixo para matar o espírito, eis o que fazemos, matamos o espírito.
— Foi ele quem lhe deu nosso telefone?
— Não, ele não tinha seu número.

continua em Ele Voltou V