...continuação de...
A informação dada por Giraldi é falsa. Ele apagou os arquivos do livro. Sessenta anos de experiências foram para o ciberespaço. Processo o disco com o restaurador, não será possível recriar tudo aquilo. A memória tenta lembrar que começava no dia em que papai foi à escola a primeira vez. E terminava dizendo que estava começando a pôr seus princípios em prática. Visão imperial. Parou de escrever em 20/10. O protagonista, o contador, é funcionário público. Não paga suas contas, vive perseguido por credores. Parece raquítico e frágil feito drummond, o em-sessenta-por-cento-dos-casos-chato. Roubou tudo o que tem da empresa onde trabalha mas nunca deu nada à família. Com o dinheiro construiu uma mansão nos Jardins para a amante. A mulher tinha visto a fotografia dela no computador dele, pegara o 38 que ele guardava em cima do guarda-roupa e esvaziara o tambor no descarado. Veja, ele é este aqui neste velho álbum. Sim, esta é a casa antiga. A mulher é esta, a amante é esta. Papai fez uns comentários a respeito, disse que foram encontrados mais de cem documentos na mansão. Os colegas do contador também estão envolvidos. É o caso típico em que o sujeito vive dois mundos, duas vidas, dois eus mas você sabe que a verdade não está em nenhum dos dois. Em ambos ele mantém um diário, num é o contador funcionário público de gestos comedidos e ar medíocre cuja maior aspiração é que ninguém o note, noutro é um pleibói que adora fazer com que os outros sintam seu prestígio e seu poder, esnobe, fanfarrão e mulherengo. Na segunda vida um dia começa a plantar indícios de que esconde de todos uma vida secreta. Faz de conta que tem atividades clandestinas, que guarda um grande e inconfessável segredo, mas que obviamente não é sua primeira vida. Quando se assegura de que todos estão com a pulga atrás daquele lugar em que as pulgas vivem nesse tipo de situação começa a plantar pistas mais significativas, cada dia mais, de repente todos veem claramente que ele é traficante de armas. Por algumas semanas fingem não saber, ele finge que ninguém sabe mas sempre arruma um jeito de mostrar que secretamente é bandido. Em dois ou três meses todos comentam abertamente. Agora já não é mais boato. O Filhodaputa é um tremendo dum Filhodaputa. Quando sai para a noite com a amante bebe todas e se mete a exaltar as façanhas que perpetrou, chama sorrateiramente seus convivas a um canto e cochicha ter armas químicas, bacteriológicas, gases, pós, iunêimit. Sabe aquele atentado em Buenosaires, teve um dedinho do papai aqui. Sabe onde fica nosso depósito? Pasme: no Texas. Uma fazenda de pecuária. Nosso sócio é congressista, já foi indicado para a eleição ao governo do estado. O notívago contador funcionário público contrabandista fascínora sabe como tirar proveito do físico frágil. Safados magrinhos fraquinhos são mais assustadores do que brutamontes. Amazing world hein?
A informação dada por Giraldi é falsa. Ele apagou os arquivos do livro. Sessenta anos de experiências foram para o ciberespaço. Processo o disco com o restaurador, não será possível recriar tudo aquilo. A memória tenta lembrar que começava no dia em que papai foi à escola a primeira vez. E terminava dizendo que estava começando a pôr seus princípios em prática. Visão imperial. Parou de escrever em 20/10. O protagonista, o contador, é funcionário público. Não paga suas contas, vive perseguido por credores. Parece raquítico e frágil feito drummond, o em-sessenta-por-cento-dos-casos-chato. Roubou tudo o que tem da empresa onde trabalha mas nunca deu nada à família. Com o dinheiro construiu uma mansão nos Jardins para a amante. A mulher tinha visto a fotografia dela no computador dele, pegara o 38 que ele guardava em cima do guarda-roupa e esvaziara o tambor no descarado. Veja, ele é este aqui neste velho álbum. Sim, esta é a casa antiga. A mulher é esta, a amante é esta. Papai fez uns comentários a respeito, disse que foram encontrados mais de cem documentos na mansão. Os colegas do contador também estão envolvidos. É o caso típico em que o sujeito vive dois mundos, duas vidas, dois eus mas você sabe que a verdade não está em nenhum dos dois. Em ambos ele mantém um diário, num é o contador funcionário público de gestos comedidos e ar medíocre cuja maior aspiração é que ninguém o note, noutro é um pleibói que adora fazer com que os outros sintam seu prestígio e seu poder, esnobe, fanfarrão e mulherengo. Na segunda vida um dia começa a plantar indícios de que esconde de todos uma vida secreta. Faz de conta que tem atividades clandestinas, que guarda um grande e inconfessável segredo, mas que obviamente não é sua primeira vida. Quando se assegura de que todos estão com a pulga atrás daquele lugar em que as pulgas vivem nesse tipo de situação começa a plantar pistas mais significativas, cada dia mais, de repente todos veem claramente que ele é traficante de armas. Por algumas semanas fingem não saber, ele finge que ninguém sabe mas sempre arruma um jeito de mostrar que secretamente é bandido. Em dois ou três meses todos comentam abertamente. Agora já não é mais boato. O Filhodaputa é um tremendo dum Filhodaputa. Quando sai para a noite com a amante bebe todas e se mete a exaltar as façanhas que perpetrou, chama sorrateiramente seus convivas a um canto e cochicha ter armas químicas, bacteriológicas, gases, pós, iunêimit. Sabe aquele atentado em Buenosaires, teve um dedinho do papai aqui. Sabe onde fica nosso depósito? Pasme: no Texas. Uma fazenda de pecuária. Nosso sócio é congressista, já foi indicado para a eleição ao governo do estado. O notívago contador funcionário público contrabandista fascínora sabe como tirar proveito do físico frágil. Safados magrinhos fraquinhos são mais assustadores do que brutamontes. Amazing world hein?
Como alguém com tanto talento para
manobrar as anesílsones e suas fantasias de oliude a ponto de lograr que elas
acreditem no que ele quiser que elas acreditem não se renda de vez à própria
capacidade de realização e contente-se em colher os louros desse talento e
decida-se a desfrutar dos benefícios produzidos por sua capacidade de manipular
outrem que seguramente só se encontra numa em cada dez mil habitantes? Por
incrível que pareça contador não é contador por opção mas por querência e como
tal tem a mesma natureza medíocre de todos os contadores que já passaram por
este planeta. E pior do que um contador com sua mediocridade só a mulher do
próprio. Essa então é mais medíocre ainda. A bendita jamais desconfia que o
marido está levando vida dupla (a esta altura, tripla). O homúnculo explica que
precisa viajar uns dias, inspecionar os balancetes das filiais da organização,
coisa a ser executada in situ, e ela, para não mexer com alemão, aquiesce.
Quando você quiser embasbacar alguém, aturdir a ponto da pessoa nem
quereresboçarreação, tasque-lhe grego. A primeira vez que ele usara o
estratagema a mulher estranhara, puxa da outra vez você disse que precisava ser
in loco, agora tem de ser in situ? Deixe-me então explanar, é que as coisas
andaram mudando lá na repartição, e você sabe, explanar é bem mais eficaz que
explicar. Parece que vai ser assim de agora em diante: ora dum jeito, ora de
outro.
Por que ele não deixa de vez aquela
vidinha ordinária com suas prescindíveis injunções, insignificâncias, marasmo,
sensaborismo? Ele bem que tentou. Mas sentiu falta dos seus balanços. Do
horário. Da existência regrada. Da patroazinha que não fazia outra coisa além
de esperar a morte chegar. E depois viciara na duplicidade, descobrira-se um
ser plural, Porra sequer imaginava que o bom mesmo é jogar em várias frentes,
quando você cansa dum personagem muda de roupa, muda de casa e voilà vira um
caieiro da vida e desvira aobelprazer e vira de novo. Só não acha bom quem
nunca experimentou.
(Procuram-se voluntários para ser pessoas
diferentes. Os mais bem-sucedidos receberão prêmios.)
As pastas com os documentos sobre o
tráfico de armas estão na mesa de Giraldi. A do topo é sobre Taiwan. Depois vêm
China, Canadá e affelandrepublik. Embaixo do nome do país está anotado o nome
do respectivo autor. Giraldi apanha as três primeiras pastas e guarda numa
gaveta da escrivaninha. Abre a quarta pasta e retira um calhamaço. Na primeira
página está escrito Diário. Na
segunda, Construção dum computador
celular. Circuitos biológicos. Transporte dos mecanismos genéticos para a
nanotecnologia. Fusil de alta precisão com mira a laser. Transistor de
pentacene.
No auge do sucesso, todo o mundo admirava
o estilo modesto de Giraldi. Seu grande personagem foi moldado quando ele fez
quarenta anos, tendo atrás de si uma história bem construída, mas hoje vive
acoçado, diz sofrer ameaças, reais ou não. Não há nenhuma implicação de fraude
literária, tudo se resume a competência profissional. Giraldi nunca publicou
porque alguns meses antes um romance quase idêntico chegou às livrarias.
Tratava de outros assuntos mas usando quase as mesmas palavras. A capa também
se assemelhava, um anjo no cio vertendo sangue pela vagina dando à luz uma
hiena de cuja boca despontavam as asas dum anjo. Giraldi imaginava estar
ficando maluco com o excesso imaginação. Cogitou lutar. Não via como. Começou a
digitar furiosamente, certo de que a resposta estava em algum lugar nas dezenas
de discos rígidos de cem tera cada um. Os arquivos somavam bilhões de trilhões
de palavras, ainda não descobrira uma fórmula científica para classificar tudo,
mas a informação estava em algum lugar. É real ou não? a pergunta não se
dissipava. Tinha de se policiar, arregimentar um exército de leitores, muni-los
de chaves para os códigos criptografados e permitir que se desenvolvessem à
excelência das normas industriais. Em breve o público, cansado da guerra
infinda contra os contrabandistas paraguayos e anestesiado com a rotina da neve
que não parava de cair havia décadas perderia o interesse e a memória do
computador ficaria a zero. A sucessão de bytes alinhados ao acaso estava
fugindo a seu controle. As frases adquiriam formas indistintas que em apenas
algumas centenas de parágrafos perdiam a capacidade de articulação e, daí, a
inteligibilidade. Os críticos logo estranharam o tom cru cuja falta de
reverberação violava as leis literárias conhecidas. Morte. Aleatoriedade.
Morte. Giraldi foi instado a defender a obra por vários críticos e professores
em vários jornais e revistas, até na tevê. Às vezes pensava em se manifestar
mas a velocidade com que o computador jorrava texto na tela não permitia. Em
apenas algumas horas dúzias de versões do romance eram geradas, baseadas em
experiências diferentes e verossímeis, colocando inesgotavelmente a esperança e
a promessa de que o próximo, o próximo e o próximo seria melhor que qualquer
coisa que jamais fora escrita. Sabendo que a utilização de números genuinamente
randômicos acabaria por produzir uma sucessão arbitrariamente bela de
caracteres, Giraldi pôde prever que estava perto do que, poder-se-ia dizer,
seria o mais próximo da verdade. Passados alguns dias nesse caleidoscópio
wagneriano, pensou que podia concluir que tudo estava no reflexo do olhar. Você
pode estar certo, o pai respondeu quando ele telefonou para contar. Envie uma
cópia, o pai pediu. Ele enviou. A cópia é esta contida neste envelope que ele
nos deixou. Será? O pai anotou no diário que só voltou a falar com Giraldi, e
mesmo assim muito brevemente, na manhã seguinte, ele disse que não estava
suportando mais a impaciência. Às vezes os romances que saíam eram exatamente
os mesmos, descrevendo absolutamente a mesma curva. Em alguns seguintes
faziam-se pequenas substituições de nomes de personagens ou falas, minúsculos
enganos calculados eram introduzidos. Na tarde do dia seguinte a aml anunciou
oficialmente que acusações de fraude seriam apresentadas contra Giraldi com
base em estudo de 130 mil livros envolvendo quase seiscentos mil personagens.
São as algoestruturas, Giraldi anotou no diário. Tenho de admitir, cometi
muitos erros, escreveu na mesma nota. A dada altura os personagens descobriram
uma forma de criar seus próprios romances a partir do próprio computador de
Giraldi. Ele estava em dúvida se devia ou não permtir que levassem aquilo
adiante. Talvez conviesse destruir tudo antes que fosse tarde. Tarde para quê?
o pai quis saber exatamente. Sou eu quem deve decidir qual é meu papel. Somos
todos iguais apenas na aparência. Os efeitos gerados em nossas vidas são apenas
experimentais, escreveu um deles no diário. Qual, precisamente? Uóxito. Giraldi
tentou regredir no código do programa primeiro linha a linha, depois construct
por construct, algo por algo, função por função, depois procedimento por
procedimento, depois unidade por unidade, deveria remover tudo que atribuísse
independência autônoma aos personagens, construíra um mini-big-bang miraculoso
praticamente sem querer, os personagens punham sítios no ar, forjavam
identidades em portais, desenvolviam motores de busca. A comissão que a aml
encarregara de acompanhar o caso acreditava que Giraldi, ou sabe-se lá quem,
alterara o código pelo menos três mil vezes mod três mil vezes vezes oito em
tipo integer, procurando atingir um estado de autoalgoritmização intra e
intermolecular que não deixasse pistas. O país começava a encolher sob os
ataques dos traficantes paraguayos nos diversos frontes. O presidente do país
vizinho já fazia discursos em que deixava clara a ambição de nos dominar de la
gran sabana ao canal de beagle. A remoção do código de aleatoriação genuína se
fazia imperativa. A maioria dos geradores de números randômicos produzem o que
é conhecido como ruído branco, george, o último protagonista, confidenciou. Você
pode pesquisar meu nome quantas vezes quiser mas não conseguirá me extinguir.
Sou mais rápido que você. Giraldi a princípio pensou que as substituições
poderiam ter acontecido por engano do próprio computador e chegou a ficar
animado. A alegria vai durar pouco, george riu. A natureza recorrente desses
enganos indica que você perdeu o fio da meada. Não sabe mais em qual formato o
programa está produzindo o código e, pior, de que forma cada parâmetro será
interpretado e executado e, pior ainda, por qual compilador rodando nas
máquinas. Toda vez que solicitar um expurgo de dados do servidor uma nova onda
de bytes randômicos inundará a rede, rearmando a trama geracional. Com as
repetições dos procedimentos as identidades nacionais se perderam. O espanhol
está invadindo incontrolavelmente o vernáculo. Leia os jornais. Ligue o rádio.
Não adianta chorar com luela. Luela, imbecil. A comissão vai divulgar os
resultados daqui a três dias e você está fudido. Nunca pensamos o que você
queria que pensássemos. Não mais possibilidade de ressubstanciar o algoritmo, a
obra agora está a nosso cargo.
O pai costumava dizer que Giraldi poderia
ter imprimido os circuitos em plástico eletrônico, que em teoria não permitia a
proliferação autoalgorítmica. Hoje em dia o plástico eletrônico é o único
material cuja fórmula ainda não caiu nas mãos dos paraguayos e que ainda é
capaz de registrar um instantâneo dum dado estado da rede. O plástico
eletrônico é constituído de cristais de kloc obtidos através dum estranho
método químico, lixiviação, sim, quando Giraldi mencionou todos torceram o
nariz, impossível.
continua em...
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