— Sempre ando com este mapa. — Mostro o
mapa do Pé Sujo e seus labirintos que cercam o Complexo da Cidade Alta.
— E essa cicatriz na testa, como foi? — o
nossossanchopança pergunta.
— A batalha mais recente da Guerra do
Tráfico. No exército.
— Matou?
— Claro. Todos os milicos daquela
operação mataram.
As forças armadas mantêm-se em estado de
prontidão permanente. Os soldados do Tráfico, que estão por toda parte, podem
atacar qualquer um a qualquer momento. O Miata avança por ruas e avenidas
selecionadas com base no mapa.
— Esta cidade dá repulsa — o
nossossanchopança diz.
Os olhos olham as jandirenes caminhando
nas calçadas. Todas de rosto enojado. Escarafunchadas de sentimentos agudos.
O Miata chega à Dutra, cujo acesso é
guardado por um batalhão inteiro de blindados semiligeiros. O mapa nos dá
caminho livre automaticamente. Os olhos olham os militares. Miseráveis.
Indolentes. Seriam esfarinhados nas mãos do inimigo. Vandílsones sem pai nem
mãe. Estão ali para apoiar o regime mas não têm a mínima ideia por quê. Salta à
vista que numa guerra de verdade seriam esfrangalhados. O óbvio vem à mente.
— Os tempos mudaram — o nossossanchopança
diz. — Parafraseando os biguemaqueanos, não perfizemos nossa curva de
aprendizagem.
O nossossanchopança, agente literário
fingindo-se homem honrado.
— Não foi culpa nossa.
Não. A maioria serve à canalha política
que está por trás dos chefes da droga, das milícias, da organização clandestina
das "comunidades".
— Já experimentou uma sensação de paz
profunda?
— Se refere ao Morro do Céu?
— Algo que de repente faz todo sofrimento
perder o sentido?
— Não.
Acelero até 190 km/h. Para que a vida
passe mais rápido. Mas não passa.
— Sabe qual é o nosso maior inimigo?
— Qual?
Quando você está a 190 tudo lá fora
torna-se insignificante, os detalhes se embaralham num túnel impressionista
gradeado de riscos horizontais. A única paz que temos no coração é pisar fundo.
Eis nossa chance. Afundamos o pé, o motor geme, sentimos uma ereção, o câmbio
sobe para sexta, o ronco do motor silencia de vez, a máquina do espaço. 230.
Basta um toquezinho no volante e lá vamos nós alegremente falar com deus.
Senhor, mais duas pobres almas vêm suplicar redenção. Acaricio a cicatriz da
testa com o dedo médio. Cacoete. Sinal físico da passagem da nossa juventude.
Os Sinais Psicológicos desapareceram. Privilégio que poucos têm na vida:
história factual marcada na cara. Jovem, gostava de nos orientar por lemas
espetaculares, never say you're sorry.
Hoje tentamos pedir desculpas a todos a quem prejudiquei mas ninguém quer nos
dar ouvidos. Não somos nada — apenas mais velho.
— Porra, já estamos juntos há vinte e
quatro horas — o nossossanchopança diz. — Nunca fica tanto tempo assim com
alguém.
Puxa a portinhola do porta-luvas, tira a
bolsa de cosméticos, abre, apanha um frasco de base, lambuza o rosto e espalha.
A pele fica pardacenta feito a dum hindu. Tensão, tentação intolerável,
reduzimos para 180. Ainda não queremos ser mais uma manchete a ilustrarosfatos.
Lá fora o Pé Sujo tomou conta de tudo. Não sobrou uma só árvore entrerrioeo
Complexo da Cidade Alta. Milhões de crianças à beira da estrada festejando
algo. Que seria? Dançam a dança da morte — tudo que desejam é perecer em paz,
deus no coração. Sempre seremos filhos de Portugal, da indecifrável trama urdida
pelos ventos acidentais e as ondas aleatórias que trouxeram Cabral até estas
plagas. Nada depende de nós.
— Você é a favor do aborto? — o
nossossanchopança diz.
— Está me perguntando hipoteticamente?
— Hipoteticamente! Só me faltava essa.
Hipoteticamente é fácil. Hipoteticamente até eu. Até a vagabunda da tua mãe.
Não. Aqui e agora. Podemos matar nossos fetos?
Existem tantas possibilidades humanas
quanto existem grãos de areia na praia de Ipanema. Não faz diferença para
anaílsones que nascem mortos e não sabem. Citar
eliotchomskyhardydostoevskyemerson na affelandrepublik? Escrevemos para dar a
morte. Reescrevo para reiterá-la. Só mato as pessoas que amo e só amamos as
pessoas que mato.
Chegamos ao Rio, ponto nevrálgico,
sumário, tradução do país, anticidade-perianto acalentando o estame
cancerígeno. O motor do Miata parece ter adquirido nova sensibilidade e geme
mais agudo.
— Não dá para confiar em quem não lê
poesia — o nossossanchopança diz.
— Nem em quem só lê quando está em crise.
— E em quem só lê aos sábados durante a
pitça.
— Nem em quem devora pitça e sai da mesa
com molho de tomate a escorrer dos cantos da bocarra.
Outro batalhão de semiligeiros.
Tudo parece ter ficado mais calmo depois
que iniciamos a guerra com o tangazo das milícias.
— Borges tinha uma baita definição para o
país dele.
— País de insensatos.
— Sabia que tem mais italiano no tangazo
do que aqui?
— Então tá explicado. Mistura de tourada
calvino picasso lorca franco máfia império romano ao som de bolero assistindo o
charlton miquelângelo.
— Covil esplêndido. De nazistas e
genocidas da Europa Central passo a passo na dança lasciva com os bailarinos
gardeleños.
— Han oído desde el Plata en los márgenes
plácidos a la luz del sol y al sonido del mar profondo.
A affelandrepublik finalmente resolveu
exercer sua vocação geopolítica e abrir um caminho para a Patagônia. Com a
rendição do Tráfico, o Pacífico já estava a meio caminho. Tudo, claro, com
financiamento e suporte militar dos biguemaqueanos, que, para não ter de aprender
o idioma que começava a invadir seu paraíso e ameaçava conspurcar
irremediavelmente a suave língua texanochicaguence, tinham decidido extirpa-la
na raiz. Iniciando pelo cone sur.
A caminho do Pé Sujo vemos uma velha que
conhecia de vista quando ia pra escola por aquele caminho. Paramos o Miata.
Hesitante, puxamos conversa com ela, ela reconhece timidamente, nos admira de
que ainda viva ali depois de vinte anos, diz que fazia aquele caminho quando
estava na segunda série do ginásio, tentamos especular o que a mulher faz, ela
dissimula sem responder, diz que nunca saiu daquele itinerário, quando vejo
estamos passando diante da antiga casa em que morava na infância, assistimos
enquanto a mulher caminha até a porta, engato a primeira, ela dá meia
volta e retorna pelo mesmo caminho, passamos pela escola.
Então me ocorre que devia ter perguntado
se ela já contou quantos passos existem entre a casa e a escola, me conformamos
pensando que ela negaria. O nome? Pelo menos o nome. E os das ruas por onde passamos.
Na certa ela diria não saber.
E o Miata entra na Linha Vermelha.
— Não se apresse — o nossossanchopança
diz. — Queremos curtir um pouco de tranquilidade antes do fim do mundo.
Finalmente chegou a hora de sermos engolidos no confronto entre os Andes e o
Atlântico.
— Esse ar irrespirável de ameaça
permanente.
Só agimos quando não temos outra
alternativa. Não nos foi dada a capacidade de nos furtar a alimentar a
esperançazinha de que a pluralidade da vida vai nos salvar. O fim não pode ser
tão monolítico, tão inapelavelmente grotesco. E se mesmo assim sentimos que a
esperança definitivamente acabou, nos viramos para o sujeito ao lado no balcão
e perguntamos: que é que você acha? Olha, diz ele, a coisa ainda vai dar uma
virada. Tem quê. Sempre foi assim. Desde que nascemos vinha um revertério e de
repente pimba. Logo atrás dele a solução. É a terra prometida, tem bronca não.
Nada melhor pros males do que uma caipirinha. E se tiver uma gatinha desfilando
na praia em frente à barraca de peixe melhor ainda. Olha só essa aí. Que
glúteos, my god. Essa é a grande diferença. Lá fora não tem disso não, chapa. É
ali ó, na dura. Realidade bateu, tá fudido. Temos uns amigos na Europa, Oriente
Médio, que confirmam. Sem papo. Somos abençoados, Porra. Esse céu, esse mar,
essa bunda, ai. O corpo fica todo inspirado. Você é que é muito cheio de
ideias. O único problema por estas bandas é que de vez em quando nosso pingolim
fica solitário. Ô chefe, sai mais umas aí. Nesse caso somos obrigado a fazer
algumas introduções. Amigo, esta é a terra sagrada em que se revogam as leis da
vida. Precisamos de forças armadas não, a salvação é sambar. Questão de enfoque
filosófico. Eis a grande diferença entre Oeste e Sul, rico e pobre. Vivemos
deliciados em estado puro com cerva gelada e isso nos basta. O resto é
preconceito dos protestantes com sua mania de meter o nariz em tudo. Tem coisa
que pode mexer não. Desanda. Gente mais estranha Porra.
— Sim — é a voz de Giraldi. — Quando você
escuta a primeira vez acha que o sotaque é pésujense. E é. Depois identifica o
cantado, ritmo carioca. E algumas entonações mineiras. E algumas
idiossincrasias aleatórias da Bahia. Soa tudo estranho, juntada de várias
línguas numa só, para fazer um idioma de alma ímpar. Inebria os ouvidos de quem
escuta. Mas é inescrevível, ninguém poderia compreender.
— Principalmente intelectualmente,
felizmente — dizemos. — Fala do demônio.
— Bem, como já te confessei, dá ao nosso
corpo uma certa satisfação. Acalma o ego.
— Não quiseram prosseguir com as
negociações. Cheguei a conceder além do que estava disposto, disse que
cooperaria se me pagassem em armas.
— Eles estão divididos e se não se
acertarem acabarão rachando incontornavelmente.
Giraldi está convencido de que os
governantes da affelandrepublik são perigosamente alienados sobre a 25demarço.
E também não tem mais certeza da visão de longo alcance dessa gente.
— Como é ser melhor informado do que o
Gusmão? — queremos saber.
— Um mistério, indeed. Agora esperam
benevolência, eles que nunca foram benevolentes. Deixei claro que ambos os
lados teriam de ceder. O pescoço que está na forca é o nosso, não o deles.
Os olhos veem na tela a figura dum homem
pendurado na ponta duma corda grossa, a garganta aparentemente esmigalhada por
um nó gigantesco. Olha serenamente para baixo como que conformado com o fim que
sabia ser fatal. Todos estão se enforcando hoje em dia, pessoas de todos os
tipos, todas as favelas, todos os lugares. É como atirar o pó da desesperança
no ventilador e espalhar a infertilidade por toda parte.
— O que receiam?
— Os que são militares menosprezam a
questão orçamentária. Estão mais preocupados com a destinação das armas. Espere
um minuto, por favor. — A tela torna-se acinzentada e ele se dirige à
empregada. — Segure a mamadeira direito. Não vê que a roupa do bebê está
ensopada? — Volta para mim. — Vivemos um turningpoint histórico. Tudo vai ser
diferente agora. Vão até parar de ver televisão, cinema, ler jornal, revistas.
Nunca lemos, você sabe. Nunca lemos. Os jovenílsones deixarão de viver feito um
bando de vacas, serão criativos, haverá uma revolução, uma verdadeira
revolução.
— Mas não lhe parece uma posição um tanto
extremada recriar o poderio do Tráfico?
— Tolice. Quando a comida acaba e a fome
passa a ser a realidade e começamos a emagrecer como se fôssemos sumir no ar,
temos de apertar o cinto senão as calças caem. O império ideológico dos
mocinhos biguemaqueanos está hipertrofiado, agora precisamos da volta dos
bandidos. É o pêndulo. Chegou a hora de nos perguntar como reagiremos
historicamente ao colapso da cultura?
Sim. Nosso papel é ficar atentos aos sons
da vida até descobrirmos qual deles é a voz de deus. O grande homem é aquele
que logra escutá-la. Aos demais que não pudemos desenvolver tal sensibilidade
cabe-nos baixar a cabeça e escutar o que tem a dizer esse interlocutor divino.
A mudança está em curso, só nos resta aceitá-la. A fala de Giraldi reflete a
percepção de que tudo foi simplificado e reduzido à mais triste irrelevância. O
que conhecemos da vida nos foi contado por homens medíocres cujo único
propósito é e sempre foi angariar poder. Eis o universo que nos deram a
enxergar. Acumulamos um conhecimento que nos trouxe à beira da ruína. Somos governados
por pulhas, fanáticos, senhorios lisérgicos e donos de canais de TV, todos
glabramente cobertos de terno e gravata. Enquanto nos esfregam essa
incredibilidade na cara nos convencem de que podem nos proteger nos pegando
pela mão nos levando para o abismo. É hora de cessar a imolação. É hora de
derrubá-los.
continua em...
continua em...
Nenhum comentário:
Postar um comentário