para RC
Allegretto
Acordo aterrorizado. Algo ou alguém me sacode violentamente pelos
ombros. Mal tenho tempo de me desconectar dum daqueles suaves pesadelos que,
desde que nasci, me embalam noite adentro e matina afora e continuam a me
distrair mesmo enquanto estou — ou penso que estou — acordado. Nesta manhã
específica, me via/vejo perseguido de perto, angustiantemente perto, por um
bicho malvado, com dentes dum medonho triglobranossauro azul e cara dum
escalafobético lula voraz aspirador de impostos e tudo mais que tenha sobrado
de coletável na Terra.
Bem, pensando bem, não sei se a sacudidas que me salvam do
triglobranossauro lulático são tão aterrorizantes assim. Pensando bem de novo,
não sei merda nenhuma. Muito menos o que é bom ou mau para mim mesmo.
— Ãããã! — mumunho, ainda imerso na minha tentativa de fuga onírica. —
Que é que...?
— Acorda! — uma voz dura e imperativa ordena. — É a pêéfe!
— A, é você, Japa. Já não era sem tempo. O belzebu quase me pega desta
vez. Foi por pouco. Muito pouco. — Por uns segundos considero a ideia de dar um
beijo de agradecimento no Japa, mas desisto a tempo.
Me sento na cama e alongo os braços num fundo porém hesitante, como só
eu sou capaz de dar, bocejo. (Experimente você amanhã ao acordar. Vai ver que
um bocejo desses não é pra qualquer um não.)
— Será que ainda sobrou alguma coisa? — pergunto enquanto visto o pijama
e calço os chinelos. (Duns tempos prá cá dei de vestir o pijama ao acordar.
Acho que as visitas constantes da pêéfe estão subvertendo um tiquinho meu tirocínio
— quem sabe até minha malandragem instintiva que muitas vezes no passado me
salvou de apertos e agruras em geral.)
O Japa olha em volta, coça o queixo e dá de ombros. Um olhar apenas
superficial, para fazer pose. Ele sabe. Sabe muito bem.
— Parece que não. — Ainda com a mão no queixo. — Já levamos o
computador, o telefone, o fax, a panela de pressão, tudo que tinha algum valor.
Sobrou apenas essa porcaria aí. — Ele aponta minha estante, onde estão meus
faulkners, dostôs, roths, eliots, audens, machados, llosas, borges, mais ou
menos nessa ordem, afora cedês de eruditos em geral. — Não sei por que você não
gosta do Coelho. — Ele meneia a cabeça em desaprovação. — Lá em Brasília nós
temos a coleção toda do cara. É do balakobako.
Sinto uma agudíssima pontada bem dentro da cabeça, seguida dos badalos
histéricos dum sino gigante. Apenas o primeiro da série de alarmes que me
assola todas minhas malfadadas manhãs neste paraíso infernal que é o mundo.
— Agora, quer saber o que nós não entendemos lá na repartição?
Sei muito bem — embora seja um rapaz que nada saiba — o que é que eles
não entendem lá na repartição. O Japa sabe que eu sei. Só que se amarra em me
torturar “com requintes de crueldade”. Sujeitos neuróticos e sensíveis como eu
são um prato cheio pra facínoras sádicos feito ele.
— O que a gente não entende lá na repartição é essa sua implicância com
o macaco simão. Pombas, o cara é um verdadeiro gênio. Você deve ser o único que
não lê ele.
Provavelmente sou, penso capiongo, mesclando minha própria imagem à do
Luís da Silva da Angústia do Graciliano, a, esses luíses da silva. Que
amargura, mein gott.
— Mas vamos ao trabalho! — o Japa bate palmas uma vez.
Dois feds do tamanho duma porta, com aquelas indefectíveis roupas pretas
que sempre me evocam um funeral (o meu funeral), aparecem do
nada. Me apanham cada qual por um braço. Me socam numa cadeira.
Um deles some e logo volta trazendo um tripé para extração de sangue.
— Qual braço você prefere? — o Japa pergunta.
— Este. — Estendo o braço esquerdo avante.
O outro brutamontes, com mão de ferro, me agarra o pulso do braço direito e
põe no suporte do tripé.
Olho impávido colosso enquanto o sangue passa da minha veia para a bolsa
de meio litro. Assim que é completada, o brutamontes conecta uma nova ao tubo.
Lá se vão outros 500 mg.
— Você tem aí umas pedras de gelo? — o Japa exige, afrouxando o nó da
gravata. — Esse calor tá me matando.
Um dos feds sanguinários some e volta trazendo quatro copos e uma fôrma
de gelo. Joga duas pedras em cada copo. Apanha a bolsa cheia, abre o tubo de
saída e abastece cada copo até a metade.
O Japa avança sôfrego a mão para um dos copos. Emborca boca adentro,
sorvendo tudo duma só talagada. Os outros dois imitam. Sobra o quarto copo no
meu criado-mudo.
O Japa arqueia as sobrancelhas na minha direção, querendo dizer “e aí,
vai tomar ou não?”
Ergo debilmente dois dedos em resposta, declinando do convite.
— Hoje você vai ter de nos acompanhar. Sabe como é. O Zé tá no komando
de novo...
Apesar da minha fieira de vates e eruditos, cujos nomes e obra repasso
mentalmente pela enésima vez, só me ocorre a melíflua Gigliola Cinquetti da
minha infância perdida, non ho l'età per uscire sola con te, e non
avrei, non avrei nulla da dirti perché tu sai molte più cose di me.
— Você é mesmo um romântico incorrigível. — o Japa meneia a cabeça,
fazendo um sinal para os subalternos.
Solto o ar dos pulmões num gesto de desânimo e desafogo. (Só eu, etc.)
Ele tinha, sim, ele tinha de arrematar cum clichê. Tem hora, até me dá raiva.