Essa revista formou o pensamento contemporâneo que é relevante. Todos os pilares da cultura moderna estão lá e cada nome vale leitura e familiarização. A lamentar apenas que eles não oferecem arquivos digitalizados dos textos para eu incluir em meu banco de dados filosófico-literário. Sintomaticamente, a revista morreu em 2003. Era o início da morte da leitura e o nascimento do império das sensações, à frente a tevê, o cinema e a consequência demoníaca de ambos, a rede. Era o nascimento do novo ser escalafobético da imersão plena na gratificação dos sentidos. Eles estão fudidos, pauvres. Todo santo dia agradeço ao Pai pela oportunidade que me concedeu de partida iminente. Misericórdia aos que ficam. Sou, acima de tudo, piedoso.
Três matutos
Três matutos
estão recostados a uma cerca de bambu. Cada qual tem o olhar fixo à frente, sem
mirar nada em especial. Conversam.
— Viver é um
sono — diz o que está à esquerda. — E cada dia, um sonho. Você fica querendo
acordar. Vira prum lado, vira pro outro. Às vezes sonha que está acordado. E
quando sonha que está acordado, fica com aquele olhar de sonâmbulo, querendo
dormir mas não consegue. Então fecha os olhos e finge que dorme. Por isso, eu
digo: viver é nunca despertar dum sono.
O matuto do meio
escuta.
— Não — diz o
que está à direita. — Viver é um rádio. Um rádio sempre fora de sintonia. Você
fica girando o botão pra cá, pra lá, sem nunca conseguir acertar uma estação
direito. Aquele chchchchchchch irritante não te sai dos ouvidos, e cada estação
que você não acerta vai te deixando mais cabrero. De vez em quando, sem saber
por que, entra um sonzinho limpo. Assim, sem mais nem menos. Teu coração
acelera. Você quase que não acredita que finalmente conseguiu. Então relaxa,
pronto pra escutar música. Mas que acontece? A música que está tocando é uma
droga. Você pensa, bom, é melhor do que aquele mugido de tempestade, aquela lamúria
de marciano o tempo todo nas orelhas. Tenta se confortar. Vai tentando se
conformar. Mas depois dum minuto não sabe mais o que é pior: a chiadeira de
doido ou a música pra macaco. Então perde a paciência, reclama, pombas! vou
mudar de estação. E começa de novo. Mexe dum lado, remexe doutro. Tampa os
ouvidos. Retesa o pescoço. Xinga a mãe. Sintoniza. Xinga o pai. Por isso, digo:
viver é um rádio fora de sintonia.
O matuto do meio
escuta e não diz nada.
— Não — discorda
o matuto da esquerda. — Viver é uma canoa. Uma canoa que não existe. Você tá
mergulhado lá no meio do rio, a correnteza te levando numa ligeireza danada.
Você não sabe pra que lado nadar. Se pergunta: pra que tanta pressa, sô? Olha a
margem do rio lá longe — longe demais pra atingir. Mira a jusante, depois a
vazante. Reza pra avistar um barco que te salve. Aí uma corredeira mais forte
te leva pro fundo. Você esperneia feito doido. Pensa: morro mas morro lutando,
como se fosse oliude. Então sobe à tona sem saber como. De repente passa um calhau
bem no teu nariz. Você apanha e consegue boiar por mais alguns instantes. Aí
vem outro calhau, esse, acompanhado duma tira de cipó. Você dá um jeito de
amarrar os dois pedaços de pau e vai boiando. Outros calhaus vão passando e
você só incorporando. Até que, exausto, quase decidido a desistir da briga, de
repente olha e se assombra: construiu uma canoa quase sem querer! Pula pra
dentro da bicha e sai deslizando pelo rio, que agora está mansinho que nem ele
só. Mas aí você tá velho demais, cansado demais de pelejar. Na primeira ondinha
solta o corpo mole na água e schlope! já era. Não. Viver é uma canoa. Uma canoa
que não existe.
O matuto do meio
escuta e não diz nada.
— Não — replica
o matuto da direita. — Viver é um estupro. No começo você não se dá conta.
Mantém a cabeça erguida, como se não tivesse ninguém te enrabando. Fica firme.
Nariz empinado. Altaneiro. Senhor de si. A dignidade em pessoa. Se voltasse a
cabeça, veria que tinha alguém te comendo o rabo e poria um fim na brincadeira.
Mas não. Não tá a fim de olhar pra trás. Só quer saber de seguir. A qualquer
custo. E vai seguindo... até que, cedo ou tarde — e mais cedo que tarde —,
sente um desconfortozinho...
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— Não — replica
o da direita. — Viver é estar no alto duma montanha. A montanha é alta de
deixar tonto. De tirar o fôlego. Invencível. Você está exausto — cada passo é
uma tortura. Tuas pernas não querem mais andar. Mas você vai galgando.
Resfolega. Geme. E galga. Olha pro alto. O pico da montanha parece totalmente
fora do teu alcance. Você olha pra baixo. A ideia de desistir volta — tem de se
controlar para não pisar em falso de propósito e despencar duma vez. Basta uma
escorregadela... Afasta o pensamento. Pensa de novo. Dá um passo. Para. Limpa o
suor da testa. Quer sentir a própria consciência mas não consegue — a cabeça
está sob o ataque de lembranças sombrias, passagens lúgubres. Só uma
escorregadela... Mas não! É preciso ser bravo. De que serve um homem covarde?
Pixotes têm de morrer mesmo. Aí você percebe que apelar pro instinto de
sobrevivência te dá ânimo. Se arrasta mais cem metros. E assim vai tua subida
rumo ao que você pensa ser o cume, teu cume. Se tiver sorte, muita sorte — ao
contrário da maioria sem sorte alguma —, um dia, um dia se vê no pico, no que
pensa ser o pico. É o pináculo dos pináculos, de onde todo o resto e todos os
demais podem ser olhados de cima. É o mirante de todos os mistérios,
esconderijo de toda a beleza que você vem buscando desde que nasceu, ei-la
finalmente ao teu alcance, ao teu redor, mas você está cansado, não tem mais
olhos para vê-la, não tem mais palavras para descrevê-la. Por isso eu digo:
viver é estar no alto duma montanha.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— Não — diz o da
esquerda. — Viver é bater numa porta. Bater. E bater. Bater, bater, bater. Se
não abrirem, você bate, bate e bate mais. Até quebrar os dedos. Se abrirem,
você vai para a sala de espera. Senta, cruza os braços. É a antessala do Grande
Salão dos Acontecimentos. Você olha pros lados. Espera. Olha pro teto. Espera.
Levanta, caminha até a porta, põe as mãos nos bolsos, volta pra cadeira, torna
a sentar, levanta. Espera. Espera. E espera. Por isso, eu digo: viver é bater
numa porta.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— Não — diz o da
direita. — É o que sempre digo: viver é um arrepio num busto de bronze numa
praça perdida.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— Não. Viver é
não querer nada. E agradecer pela dádiva de não querer nada.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— Não. Viver é
não pensar duas vezes. Pra não ter de pagar duas vezes.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— Sim. E não
pensar em todas as possibilidades.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— É desaparecer
na multidão.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— É não procurar
a fonte da alegria.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— Viver é
morrer.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada.
— Viver é viver.
O matuto do meio
só escuta e não diz nada. Nisso, um helicóptero passa entre as nuvens. O matuto
do meio tira do bolso da camisa uma fotografia. É uma fotografia amarrotada,
envelhecida de manchas amarelas. O matuto a coloca diante do rosto, sente
vontade de dizer uma ou duas palavras. Desiste. Guarda a fotografia no bolso.
Enfia a outra mão num bolso das calças. Apanha uma cartela de pílulas. Extrai
uma e põe na boca. E diz:
— O que é ou
deixa de ser, não sei. Mas que precisa tomar tranquilizante pra viver, isso não
tem dúvida.
Uma só mulher
Como é do conhecimento de todos, sou homem duma
mulher só.
E como sabem todos vocês, minha mulher é minha
companheira. (Ouso afirmar até mesmo no sentido leninista do termo.)
E o mundo também está a par de que, ao longo de
nossa vida juntos, ensinei à minha companheira e mulher exclusiva uma quase
infinidade de coisas. Entre elas, a desprezar as mentiras sedutoras do
misticismo e as bobagens pueris da astrologia.
Lhe mostrei ainda como comprar peixe na feira sem
trazer para casa um namorado à beira da putrefação. E como preparar um baiacu
com pupunha e legumes verdes de dar água na boca até na estátua de dom Pedro no
Museu do Ipiranga.
Além disso, lhe dei dicas – inclusive na prática –
sobre como tolerar os intensos, os descomedidos ataques de cócegas que lhe
aplico em suas fragrantes e glabras axilas sem fazer xixi na calcinha de renda
vermelha e bege.
(Certa feita, depois de passar o dia todo fora só
voltando para casa na minha hora de trabalho, ela tirou um embrulhinho da bolsa
e mo estendeu. (Vou fechar aspas precocemente aqui para não me perder em algum
período mais elucubrado abaixo.))
“É um presente.”
Abri fazendo cara inquiridora ante uma caixinha
mimosa e esquisita fechada apenas por uma aba.
“Pra deixar meu amorzinho perfumado!”, explicou.
Simulei um sorrisinho simpático enquanto abria a
caixinha, procurando não rasgar a embalagem para aproveitá-la em ocasiões
futuras que requeressem a troca de lembrancinhas.
“É um A Scent Florale EDP”, ela não conteve a ansiedade.
E emendou:
“Quando a vendedora me disse que o
preço tinha baixado de quatrocentos e quarenta e seis para apenas cento e
setenta e sete, ai, não resisti! E ainda me deixou pagar em seis prestações de
trinta paus no cartão! É feminino, mas sei que você não liga pressas coisas”.
Assim dizendo, arrancou o frasquinho da minha mão e
aspergiu um ligeiro borrifo em meu braço. Fechei os olhos, cheirei e fiz ”hmmmmmm,
que delícia!”.
“Sem graça!”, ela riu.
(Ah como amo quando ela diz “sem graça!” Me sinto o
mais endiabrado homem deste planeta.)
“Você não usa nem desodorante. Podia
pelo menos tomar banho mais frequentemente”.
Fiz de conta que não escutei. Não gosto quando ela
critica meus hábitos pessoais – ou a falta deles. Não sei se vocês concordam,
mas brasileiros em geral raiam a obsessão pelo asseio e a higiene pessoal. Um
banho por semana para mim é mais que suficiente. Não receio meus odores, não
temo meus fedores nem acho que minhas secreções mais softs sejam caso de
esfregação e creolina diária. Me sinto até mesmo reconfortado e mais senhor de
mim sabendo que estou impregnado das bactérias odoríferas do meu próprio suor.
Voltando ao frasco de perfume que ganhei, naquela
mesma tarde, por um desses golpes de sorte que soem ocorrer uma vez na vida
etc., fora passear na rodoviária* no centro da cidade e tivera a ideia de
roubar uma rosa duma das floreiras ao redor da praça onde os ônibus estacionam.
*Não sei se já contei, mas tenho uma queda por
rodoviárias e ferroviárias, a ponto de ser bem capaz de me abandonar um dia
inteirinho zanzando entre os viajantes indo e vindo e vindo e indo como se quem
fora e viera fosse eu e não outro. Mas esta é uma outríssima história que não
tenho tempo de elaborar agora e que deixarei para outro dia. (Tudo bem, sei que
esse outro dia nunca virá, como tantos outros nunca vieram nem jamais virão,
pois míngua cada vez mais minha paciência para escrever sobre minhas próprias
manias (e, já que estou no assunto, sobre qualquer outra coisa)).
(Quando nos conhecemos, costumava invadir os
jardins que encontrasse pelo caminho e roubava uma flor para ela. Se não
houvesse jardim algum pelo caminho sempre dava um jeito de arrumar uma pequena
surpresa para não chegar à sua casa de mãos abanando. Como sempre fui mais duro
que etc., essa pequena surpresa em geral se resumia a um poemeto garatujado no
verso da embalagem do meu maço de Capri em pé numa esquina. Na época fumava
Capri (ou Hilton long size quando dispunha de algum sobrando). Mas com o tempo
acabei deixando de lado o costume de me preocupar em lhe fazer agrados, provavelmente
porque fui perdendo a capacidade de sonhar e recusar, minimamente que fosse, o
ônus da sobrevivência, até um dia acordar este ser seco, tosco e
desinteressantíssimo que sou hoje.)
“Também me lembrei de você”.
“Cadê?”
“Na geladeira”.
Ela abriu a porta do refrigerador e lá estava a
rosa, num meio copo d’água bem no meio da prateleira do meio.
“Tem um pouco de lasanha no forno e uma
caixa de suco de pêssego na geladeira. Ah, o maço de Camel tá na segunda gaveta
do armário”, acrescentei.
Ela sorriu, alisou minha barba com os dedos e
reclamou que eu prometera aparar a cuja para seu aniversário e aproximou a rosa
do narizinho arrebitado e aspirou o perfume da flor com a doçura que a natureza
cometera a suprema justiça de depositar num único ser e sorriu um daqueles seus
sorrisos igualmente suaves, só para me mostrar como é que se aspiram os
perfumes da vida.
“O presente de verdade é este aqui, seu
bobinho”. Rindo, ela me estendeu outro
embrulho.
“Poe!”, adivinhei, esticando as pontas dos bigodes,
ansioso.
Não me canso de espiar (e expiar também) a
desfortuna do Afortunato.
“Para com isso, que tá virando ferida!”
“Não abre a torneira que ainda não
arrumei o sifão!”, alertei.
O sorriso se transubstanciou e por um segundo vi
diante de mim uma serpente com as presas prestes a abocanhar o mais frágil
camundonguinho do mundo. Ela aspirou novamente o perfume da rosa, agora com
mais entusiasmo, e disse que estava morrendo de vontade de comer carne.
Eu também, pensei.
Mas não disse.
E não disse tantas outras coisas.
Nem naquela ocasião, nem naquele dia, nem nunca.
Não disse que por “homem duma mulher só” não quero
dizer simplesmente que sou fiel à minha mulher. Ou que temos uma relação
monogâmica. Não, não é só isso que quero dizer.
Por “homem duma mulher só” quero também dizer que
tive apenas uma mulher ao longo de minha vida.
(Fora mamãe, que não conta nesta conta).
Por “tive apenas uma mulher ao longo de minha vida”
quero dizer que nunca tive outra mulher em minha vida.
Que nunca me apaixonei por outra mulher.
Que nunca fiz sexo com outra mulher.
Se o Polo Norte ou o Polo Sul não fosse tão
desumanamente gelado e inóspito, eu a carregaria para dentro duma caverna entre
as geleiras e romperíamos com o mundo e nos devotaríamos um ao outro longe dos
tenebrosos perigos a que estamos sujeitos nas cidades e nas comunidades sociais
e exclamaria ”que se foda todo o resto!” com entonação de
macho protetor e ela, minha única, minha exclusiva mulher, selaria nosso pacto
cum beijinho úmido e estalado.
Enquanto eu sonhava com as distantes, cavernosas
geleiras, ela já voltava do barracão no fundo do quintal trazendo uma chave de
grifo e uma bisnaga que a princípio não pude reconhecer.
“Arruma logo esse sifão, que não dá pra
ficar lavando louça no tanque”. E
enfiou a ferramenta e a bisnaga entre minhas mãozinhas delicadas de inteleca
sedentário.
“Que coisa é essa?”, perguntei, lendo o nome do produto.
“Vedador de rosca, ora. Não foi você
quem pediu?”
“Anaeróbico? Pra que serve?”
“Bom, quando vi o anaeróbico, pensei,
deve ser melhor que o aeróbico. Senão, não fabricariam um anaeróbico.”
Me sapecou um selinho e foi cuidar da vida, me
deixando de grifo na mão tentando ler as infinitesimalmente minúsculas
letrinhas da vasta descrição na embalagem da bisnaga.
Bem, certamente não vai explodir quando eu aplicar
no sifão, pensei animado, me ajoelhando diante da pia da cozinha.
Vendo que finalmente me agachava para fazer o
serviço, ela ligou o rádio (que nunca tiramos da Cultura FM). Em geral tenho a
sorte de não deparar cuma extravagância qualquer de Paganini, o mais chato dos
compositores já nascidos neste planeta de chitõezinhos. E minha estrela me
acudiu mais uma vez: começava a tenebrosa, a fantasmagórica, a apocalíptica
introdução de Lohengrin, com Jonas Kaufmann.
In fernem Land, unnahbar euren Schritten,
liegt eine Burg, die Montsalvat genannt;
ein lichter Tempel stehet dort inmitten,
so kostbar, als auf Erden nichts bekannt
Em meu computador tenho duas versões do Lohengrin:
essa com Kaufmann, outra com Franz Völker. Raramente escuto apenas uma – gosto
de ficar comparando – no que, tem dia, sou capaz de gastar várias horas. Pois
nunca consigo me decidir qual é a melhor. São interpretações bem diferentes. Um
barítono, outro, tenor. Um, doçura do começo ao fim. Outro, alternâncias
repentinas, tons surpreendentes em cada frase. Depois que conheci Kaufmann
nunca mais escutei Plácido. E ninguém pronuncia o alemão como um alemão, como
diria Heidegger, secundado por Kant, Hegel e Blonda, a cadela pastor-alemão do
Adolf.
Como temia, manejar a chave de grifo acumulando
estes 120 quilos que a preguiça me deu sobre meus pobres joelhos que nasceram
para apoiar não mais que sessenta e tentando enfiar a cabeça por sob a pia logo
me deixou absolutamente exausto. Detesto ter de mexer os músculos. E minha
barriga há décadas deixou de ser encolhível, um centímetro nem por um minuto. E
se não posso retraí-la, não sou capaz de avançar o tórax outro centímetro que
seja.
O suor começou a me escorrer pela testa, as
têmporas, atrás das orelhas, se infiltrando na barba, escorrendo pelo queixo
até gotejar nos espessos pelos que tenho no peito e que também já estavam
encharcados.
Foi nesse instante que me lembrei de que estava
morrendo de fome antes desta desastrada aventura de encanador.
Quando decido que estou morrendo de fome não
há o que me dissuada (epa) da vontade de enganar a pança. Então lembrei que
tinha visto, ao lado do meio copo d’água bem no meio da prateleira do meio da
geladeira quando ela abrira a porta do refrigerador (opa), uma cartela de
isopor ainda fechada contendo umas rodelas de mortadela.
Pessoal, se existe algo neste mundo repleto de
carcamanos sem rumo que faz com que o que me restou de lógica nos meus
pensamentos deturpados se dissipe num instante é a visão de rodelas de
mortadela.
E se tem algo neste planeta de seres nascidos para
a sedução pelo estômago enquanto almejam à confraternização com os anjos que me
sequestra do meu estado de homem minimamente racional para me jogar numa cela
obscenamente repleta de guloseimas, quitutes e elixires divinos é a ideia de
traçar um belo sanduba de mortadela em pão italiano (epa) na companhia duma
geladérrima garrafa (detesto as famigeradas latinhas) de brama.
Incontinenti, larguei a chave de grifo e a bisnaga
de cimento plástico num canto debaixo da pia, me pus em pé sob uma traviata de
gemidos e palavrões, lavei as mãos e tomei as providências cabíveis.
E, equipado com os apetrechos do meu piquenique
noturno, rumei para o alpendre e assentei base.
Sanduba numa mão, copo de cerva n’outra, me
entreguei aos meus devaneios.
(Okay, pessoal, vou poupá-los dos ditos. Vocês, ou
pelo menos a maioria, já me conhecem e sabem que esse papo ameno que estou
levando aqui pode degringolar de repente. Sim, sem mais, nem menos. Vocês
também sabem, é uma das minhas fraquezas, essa coisa de degringolar, de
vira-e-mexe. Se não me controlar, logo parto pra virar a mesa. Dizem que sou
louco por pensar assim. Mas não se preocupem. Enquanto tiver meu sanduíche
nesta mão e meu copo de cerva nesta outra, estamos todos a salvo.)
Mas – e acho que, depois de tudo, tenho pleno
direito a levantar a questão – que outro momento me seria mais apropriado a
devanear senão naquele em que estou mais apto e desimpedido para me entregar
aos meus devaneios?
E, mesmo nunca ter tido sexo com outra mulher, me
sinto capaz de afirmar que até hoje houve apenas uma fêmea com a qual fiz sexo
verdadeiramente ensopado de erotismo, paixão, volúpia, sofreguidão, fantasia,
egoísmo, animalidade, ternura, cumplicidade.
(Um dia (ou melhor, uma noite) me vi sem saída ante
uma virago que não pestanejou (não! não pestanejou, o monstro!) ao dar cum
homem tão suscetível em sua simplicidade mental e sua unicidade espiritual e
tão frágil em sua inépcia de se autodefender e fui obrigado a brochar para
impedir que o estupro se consumasse.
Pois é. (Ixe!)
As feministas de araque não imaginam – ou não são
suficientemente humildes para admitir – que muitas dentre o rebanho
feminino seriam plenamente capazes de executar aquelas tenebrosas ondas de
estupro e impulso eugênico que até hoje os historiadores afirmam ser
prerrogativa masculina. É mentira que uma mulher seja incapaz de perpetrar uma
violação sexual, como atestou Germaine Greer em A mulher-eunuco. A
mulher não estupra simplesmente porque não pode deixar em sua vítima a semente
duma nova vida mas sua vítima pode deixar uma semente na estupradora. Como
costumava dizer Humphrey Bogart, a humanidade está sempre uns pensamentos atrás
da natureza.
A rebelião das pizzas
Pessoas, fiz esta apresentação para os desejem
me conhecer minimamente e quem sabe aprofundar um pouco o nível de interação
entre nós sem se assustar em demasia.
Antes, uma brevíssima introdução
Muitos de vocês certamente pensam
que as alusões que alguns de nós temos feito às elites sejam apenas piadinhas
sem maiores consequências. Por Deus, não são, não. Nós aqui levamos — e
devemos levar — muito a sério o papel de escol que desempenhamos na comunidade
social, a comunidade verdadeira, em que vivemos.
Desde o começo fui contra a campanha
de bastardização literária que ora está em curso. Devemos ir de encontro a esse
movimento de indigenciação com todas nossas unhas esmaltadas com enamel Chardin
Brodeurs e nossos dentes clareados com gel de peróxido de carbamida.
A partir da presente data os novos
patronos deste meu querido Website serão Gasset y Ortega. Finalmente teremos
uma identidade à altura de nossa linhagem. Tudo bem, ainda pairam algumas
dúvidas quanto à origem nobre de Ortega e o paradeiro obscuro de Gasset.
Sabe-se, por exemplo, que Ortega nasceu no número 620 da rua Manoel Coelho,
pertinho aqui de casa, e que a família do rapaz atuava no ramo de restaurantes.
Ora, não é porque o gajo recendia a alho e cebola do Ceasa que deixaremos de
honrá-lo como ele merece. Quanto a Gasset, dizem as más e infectas línguas que
ele parece mais um personagem saído de Educação sentimental, de Flaubert, mas
essa versão ainda é extremamente controversa. O fim do rapaz, entretanto, é bem
conhecido. Ao desembarcar em Cumbica oriundo de Paris, ele entrou num daqueles
radiotáxis que fazem o trajeto aeroporto-Vila Prudente e nunca mais foi visto.
Provavelmente seu cadáver esteja hoje enroscado em alguma pedra no leito do rio
Tietê, pauvre.
Agora, retomando o nosso assunto,
cumpre fazer alguns esclarecimentos.
Comecemos pela descrição deste
superfaciente sítio literário. Já passou da hora de avisar a todos que não, tal
descrição não é uma gracinha tola destinada a entreter internautas ociosos.
Estou ciente de que alguns leitores têm alardeado por aí que essa descrição é
apenas um simulacro para despistar distraídos, que dão aos montes por aí afora.
Acontece que essa explicação, por si, também é um despiste. O resultado dessa
dupla dissimulação é que ela se autoanula, tal como dois fatores com o mesmo
sinal, daí ficando a falsa impressão de que estamos aqui apenas para fazer
piadas.
Sempre tive vontade de desempenhar
um papel na elite da minha rua, do meu bairro, da minha cidade, do meu país. E
para poder fazer jus a nosso papel de elite, é meu dever cuidar para que o
intercâmbio de ideias e de opiniões se dê sempre de modo a evidenciar que sou
inteligente e sei pensar. Mais: considero ser meu dever, como indivíduo de
intelecto e posição social privilegiado, primar pelo bom uso da semântica, da
retórica, do léxico e do vernáculo. Se e quando instado a demonstrar nossa
verve para um fim especificamente nobre, poderei até mesmo empregar a grandiloquência
sem dó nem piedade. Vocês sabem, nenhuma arma é cruel demais quando o propósito
é dizimar a plebe iliterata.
Qual é,
afinal?
Certo, pessoal, reconheço que alguns
de vocês talvez estejam boiando mais que peixe morto no mar de São Sebastião depois de vazamento de óleo de cargueiro da Petrobras. Bem, só posso dizer por
ora que pertencer à aristocracia intelectual requer algum sacrifício. Não é à
toa que estamos aqui. Cada um de nós tem a obrigação de envidar esforços para
evoluir individualmente, de modo a ajudar a promover o bem coletivo. Se
fôssemos egoístas e preguiçosos seríamos simplesmente iletrados, não é mesmo?
Ou então nos contentaríamos em trocar vitupérios como sói ocorrer nos mais
pobres websites da rede.
Como é notório, constituímos uma
dissidência nobiliárquica do Grande Fórum da Vida. Acredito que todos já
puderam atestar pessoalmente a limitação dos debates naquele antro. Eu mesmo
participei deles por alguns anos e não pretendo voltar. Admito que algumas
vezes cedi ao clamor dos instintos e cheguei a recomendar veementemente a um ou
outro ser banal que internalizasse as próprias palavras por via retal.
Posteriormente me arrependi. O pecado, vocês sabem, não está em errar, mas em
não reconhecer o erro.
Estou no
ponto
À altura em que nos encontramos,
penso estar apto a trocar o ícone populista que ilustra este sítio por algo que
realmente traduza minha estirpe. Bem, minha sugestão nesse sentido é aposentar
incontinenti o rosto amanhecido do fulaninho que aí está e usar nada mais nada
menos o semblante tenso e profundo dos grandes, dos insuperáveis pensadores
franco-espanhóis Ortega y Gasset.
Há entre vocês uns que ainda acham
que Arnaldo Sin Jabor é representante de Ortega e Diogo Mainardi, de Gasset no
Brasil. Não poderia haver engano mais ledo. Se você pensa que Jabor seria capaz
de dizer uma pérola divina como “Não sabemos o que está acontecendo conosco, e
é exatamente isto que está acontecendo conosco, não saber o que está
acontecendo conosco (...)”, se você de fato pensa isso, bem, só posso concluir
que você está no website errado.
Há mais de 70 anos Ortega escreveu Rebelião,
sendo logo acompanhado por Gasset, com seu das Massas. A partir daí ambos
passaram a ser conhecidos como os pensadores mais elitistas que já pisaram em
terras paulistas.
Ortega y Gasset defendem que o homem-massa de hoje habituou-se a exigir para si apenas privilégios, sem a contrapartida da
responsabilidade. Absolutamente alienado dos obscuros mecanismos subjacentes à
vida moderna, o homem-massa se acha detentor de todos os direitos e isento de
todos os deveres. Como vocês já podem deduzir, é exatamente essa dicotomia que
está por trás de ideologias espúrias como o paulocoelhismo.
O paulocoelho da vida, mesmo sendo
um serzinho desprezível, inculto, despreparado e, sobretudo, preguiçoso, se
pensa capaz de ombrear-se aos “homens de excelência” de que falam Orsset y Gatega. (Sim, a ordem dos nomes de ambos é indiferente, embora Ortega
postulasse que não. Mas essa discussão não vem ao caso no presente ensaio.)
Esses homens de excelência,
naturalmente, somos todos nós que temos coragem suficiente para dar um passo
avante e tomar em nossas mãos a responsabilidade pelos rumos das nossas
vidinhas. Cabe a nós a tarefa da criação do paradigma pelo qual o homem médio
terá que se pautar. Cabe a nós o dever de fazer eu, ele, você avançar na
direção que elegemos a melhor para nós mesmos e para os nossos. E cabe a nós
assumir a responsabilidade pelos nossos próprios erros e acertos. Embora Ortega
y Gasset não tenham particularizado a definição de passivismo e imaturidade do “homem-massa”
no sentido de que são uma resposta ao poder infantilizante de um paradigma
hierárquico de dominação, ambos distinguiram o estado inerente do homem (e
também da mulher). Como vocês já perceberam, estou me referindo à excelência. É
por essa razão que podemos nos chamar vanguarda, ou grupo seleto, pois que
assumimos a missão de quebrar o encanto da passividade, da sina de seres
dominados e escravizados.
A partir daí fica evidente a forma
solerte como determinados leitores a quem não vou me dignar a nomear planejavam
nos submeter a todos a um regime de força, ou seja, na tentativa fracassada de
nos atingir em nossa prerrogativa de homens de excelência para nos subtrair
de nossa liberdade mesma. Quando somos livres, somos livres não apenas para
exercermos o livre arbítrio, mas também para exercermos a excelência. O
conflito comunismo-capitalismo certamente é o exemplo mais completo do que
Ortega y Gasset pretenderam expressar. Enquanto num o homem abdica de sua
prerrogativa de escolha individual para sujeitar-se ao arbítrio e discrição de
um terceiro, o que, evidentemente, está fadado ao fracasso per se, noutro ele
está livre para explorar a vasta gama de estados naturais do ser humano,
podendo, se quiser, passar fome ou criar os mais sofisticados e maravilhosos
sistemas de promoção do bem-estar e do conforto jamais sonhados pela mente
humana.
A maioria de nós brasileiros
abdicamos do nosso poder e da nossa responsabilidade em favor de, no dizer
preciso e insuperável de Gasset y Ortega, outro alguém. Não confiamos em
nosso governo (se é que me faço entender), mas, ao invés de tomarmos a
solução para isso em nossas mãos, escalamos outras pessoas (se é que me
manjam) para fazê-lo. Não podemos ser “homens-massa” sempre a exigir cada
vez mais programas governamentais, mais qualidade de vida e pizzas com maior
variedade de sabores, ao mesmo tempo em que sequer prestamos serviços
voluntários em nossa própria Comunidade, como se não fizéssemos parte do meio
em que vivemos. Uma simples postagem num tópico eletrônico a cada 2 ou 4 anos
não é o bastante! Temos de nos conscientizar que é nossa obrigação trabalhar
dez, vinte vezes mais. Para cada dez distraídos iletrados, temos de
contrabalançar com dez vezes mais suor. Na vida não acontecem milagres.
Ortega y Gasset tinham desprezo pelo
homem médio obcecado por preservar seus privilégios de classe e ao mesmo tempo
fugir do domínio das elites e do nivelamento por baixo das massas.
Assim, peço que a partir de hoje
todos os leitores leiam A Rebelião e das Massas, os dois mais importantes livros dos
nossos amiguinhos. Dessa forma evitaremos vexames como querer dizer algo mas
não ter a mínima ideia de como fazê-lo. Um tema perpassa os vários artigos do
livro: é o nascimento da sociedade de massa, que hoje, aparentemente, está
assumindo um caráter de verdadeiro império. Quando assistimos aos desmandos e o
discricionarismo daqueles determinados leitores, vemos que não há nada mais
pertinente e oportuno.
Mas Ortega y Gasset não se limitaram
a desprezar o homem médio. Na talentosa prosa que vibra sob os conceitos da
Rebelião, eles elaboraram uma crítica demolidora ao postismo diletante.
Por último, é mister salientar que,
infelizmente para alguns poucos, não será mais considerado de “bon ton” citar
Paulo Francis, seja qual for a razão. Se fossem vivos, Gasset y Ortega fariam
picadinho do jornalista campeão em citações de autores obscuros por centímetro
quadrado. Quem conhece Francis a fundo sabe que ele não manjava lhufas de
Ortega y Gasset, obsessivo que era por Edmund Wilson, Arthur Koestler, Freud,
Eliot e Joyce. Mas até aí, Olavo Carvalho não conhece nem Ortega, nem Gasset
nem nenhum outro autor que valha a pena ser citado, então estamos quites.
Finalmente, solicito aos meus
queridos leitores que me enviem seus nomes à medida que concluírem a leitura da
Rebelião. Quando todos tiverem feito isso, iniciaremos uma nova fase em nossa
existência: todos escreveremos em latim.
Demonizando os eleitos divinos
Deitado,
Deus olha o botão na parede. O botão se acha inapelavelmente longe de seus
outrora superpoderes. O Big Guy nunca se sentiu tão impotente. Quer esticar o
braço. Dói só de pensar. Está paquidérmico. Nos últimos tempos tem engordado a
média de três toneladas e quatrocentos quilos por dia, sem contar os fins de
semana. A culpa, a máxima culpa é d'Ele, só d'Ele, mais ninguém. Contrariando
as ordens de Hipócrates, vem detonando uns dois mil biguemaques às escondidas
por dia. Fora as centenas de batatinhas kingsize. “Ai!”, lamuria baixinho, “preciso
tomar jeito! Se o Serafim sabe... Será melhor cortar o guaraná? Puta merda, nem
Eu posso ter mais prazer nesta vidinha sem graça...!”
Aponta
o dedo na direção do botão. Reza. Fixa o olhar na unha. Faz careta de
agonia. Contorce a carona bolachuda. Parece
estar dando tudo que pode. O dedo vai esticando uns 20 centímetros,
penosamente. Estanca. Deus espreme os lábios, que ainda guardam um quê da
antiga sensualidade divina. Aperta as pálpebras num esforço de concentração. O
dedo avança errático mais uns 10 centímetros, dobra para baixo, exausto, como
se brochasse —. Deus desiste. Reunindo todas as forças que ainda Lhe restam,
solta um urro:
—
Serafiiiiiiiiim!
Mal
chama, se segura no gradil da cabeceira da cama, aguardando o tremor. O quarto
permanece inabalado. Ele espia de lado as paredes para ver se estão vibrando.
Nada. “Putz!”, choraminga de novo, “não posso nem sacolejar esta joça com meus
berros! Que é que está acontecendo coMigo, meu Deus, digo, Eu? O pior é que o
tranqueira do Serafim tá ficando velho e surdo. Antes, vinha correndo mal
sentia o Céu tremer. Agora...”
—
Serafiiiiiiiiim! Serafiiiiiiiiim! Serafiiiiiiiiim! — se põe a esgoelar
histérico. O rosto fica rubro do esforço. Ofegante, Ele sucumbe. Deixa os
braços caírem lassos para os lados. Virando penosamente os olhos, fita
angustiado o aparelho de tevê pendurado na parede à Sua frente. Aperta as
pálpebras uma vez. Nada. Aperta outra. Nada. Dá uma saraivada de piscadas na
direção do aparelho. Nada. Apalpa os lençóis com ambas as mãos, torcendo para
que o controle remoto ainda esteja por ali. A contragosto, gira o pescoço para
o lado do criado-mudo. Ah! lá está o desgraçado! Fora do Seu alcance. “Por que
o Serafim faz isso Comigo?” choraminga de novo. “Te-lo-ei tratado tão mal
durante todos esses milênios, para que ele seja tão cruel em sua vingança?”
—
Serafiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim!
A
gigantesca porta da Suíte Divina se abre num baque espetacular, socando
estrondosamente a parede. Um anjo velho e de ar doentio entra. Arrasta uma das
asas no chão atrás de si. Tem a expressão extremamente desanimada. Um humano,
se o visse, se espantaria que criatura tão mórbida e carcomida pela passagem
dos tempos tivesse forças para caminhar.
Apesar
da impressão geral de fraqueza, ele traz no rosto enrugado um esgar feroz,
quase raivoso, que de angelical não tem nada.
O
recém-chegado se detém ao lado da cama de Deus e sibila com voz áspera e dura,
tão dura quanto o olhar frio:
—
Que é que foi dessa vez...? — E completa, agora com desdém: — ...meu Senhor? Quer
mais papa de aveia?
—
Ah! Serafim, graças a Deus, digo, Mim! Já não era sem tempo. Não, obrigado.
Essa papa que você tem me servido... sei não, tem um gosto... como diria...
Bem, um gosto meio estranho.
—
Ora, meu Senhor! — Serafim abre um sorrisinho sórdido e escarnecedor. — É a
mesma que venho Lhe servindo desde o século décimo oitavo a.C. Só mudamos um
pouco os ingredientes. Tiramos a gordura trans, reduzimos o colesterol ruim,
aumentamos as fibras... Sabe como é, essas porc... digo, essas coisas que todos
comem hoje em dia.
Deus
fica absorto por uns segundos, aparentemente procurando uma resposta a
contrapor ao anjo velho e carcomido, mas desiste. Apenas pergunta:
—
Diga: o mundo acabou?
O
anjo velho e carcomido emite uma bufada ruidosa e exasperada.
—
Você me chama lá dos Quintos dos Infernos até aqui só para me fazer essa
pergunta besta? — Serafim se volta bruscamente para a janela, que está aberta,
e sacode raivoso o dedo indicador. — Veja Você mesmo, sua Anta Balofa! Por
acaso parece que o mundo acabou? Aquelas nuvens lá fora serão o quê? Miragem?
Deixe de sentir pena de Si mesmo e ponha esse cérebro entupido de banha para
funcionar, pelo amor de... Bem, Você sabe de quem!
Deus
fecha os olhos, amargurado. Abana longamente a cabeçorra, mexendo os lábios
como se rezasse. Abre os olhos e fita Serafim, um olhar meigo e ao mesmo tempo
suplicante.
—
Hoje não é trinta e um de outubro de dois mil e seis?
—
É claro que é! — Serafim aponta novamente o dedão duro, agora indicando uma
folhinha na parede. — Olha lá! Trinta e um de outubro de dois mil e seis.
Terceiro milênio depois do Teu Filho. Até isso serei obrigado a mastigar para
Você agora?
—
Pois é isso mesmo que estou falando, meu bom Serafim — A voz de Deus tem um tom
extremamente gentil, meigo, quase bajulador. — Pelas minhas contas, o mundo
deveria ter acabado antes de ontem. Vinte e nove de outubro de dois mil e seis.
Era esta a data programada, não era?
O
anjo velho e carcomido faz menção de abrir as asas, mas fica só na ameaça.
Obviamente não teria forças para fazê-lo. Se limita a olhar o teto com
impaciência, chuchando as bochechas por dentro com as gengivas desdentadas. Por
fim, vocifera:
—
Sim, era! Era a data programada. Só que houve... bem, uma ligeira mudança nos
planos, Você sabe.
—
Que mudança? — Deus franze as sobrancelhas, aflito. — Por que não Me
avisaram? Quem mudou?
—
Bem, eu e o meu angelical companheiro Lúcifer decidimos tocar o negócio da data
mencionada em diante.
Deus
parece sentir uma fisgada dentro do peito. Bem que desconfiava que vinha sendo
traído. Só não contava com tamanha desfaçatez.
—
Me diga pelo menos uma coisa, meu bom Serafim. E o Delúbio? Prenderam aquele
diabo, finalmente? Pelo menos isso os homens foram capazes de fazer?
—
Prender o Delúbio? — Sem se conter nem se esforçar para dissimular o deboche,
Serafim assume uma expressão indizivelmente sombria e solta uma gargalhada. —
Hahahahahahá!!! Essa é boa! E quem Você acha que é nosso contato na Terra?
Hahahahahahá!!!
— Nosso?
— Deus percebe algo ominoso naquele plural. Ademais, depois de conviver com
ambos por toda a eternidade, sabe que Serafim e Lúcifer não teriam capacidade
para engendrar um motim sem ajuda externa. — Quer dizer que vocês não estão
sozinhos nessa tramoia contra Mim?
—
Claro que não, Sua baleia já pra lá de extinta! Vimos contando com uma pequena ajudazinha,
hahahahá! dum pessoal lá do Brasil. Desde mil, novecentos e setenta e nove,
para ser mais exato. Hahahahá!
—
Vocês acham que o Berção ainda aguenta?
—
Achamos. Dá para explorar mais uns trinta ou quarenta anos. Se usado com
moderação, claro. Hahahahá!
Esquerdistas, direitistas, quejandos e que tais
Umpf!
A
alegação de que tudo é Ser (partindo-se da abstração
máxima de
que Ser é o que é) não inquina a distinção
entre
'ser' e 'dever ser' que é de ordem lógica, perceptível
na
estrutura elementar do juízo, que é o ato de atributividade
necessária
de uma qualidade a um ente, consoante o enunciado
básico S
é P, ou S=P.
Miguel
Reale
A mais
tola das virtudes é a idade. Que significa ter quinze,
dezessete,
dezoito ou vinte anos? Há pulhas, há imbecis, há
santos,
há gênios de todas as idades.
A verdadeira
apoteose é a vaia. Os admiradores corrompem.
Nelson
Rodrigues
Há na orkut, santuário de narcisistas indolentes, uma comunidade chamada
Literatura. Não vejo ninguém sério participando. Como também não sou sério,
tentei. E logo dei no pé ao me ver entre moleques e adultos subletrados que
obviamente não têm algo mais útil a fazer na vida. No início ria às bandeiras
desbragadas com as postagens de quem não leu nada e sabe tudo. Muitos são
poetaços ─ poetas de verdade estão perdidos por aí fazendo o que vieram ao
mundo fazer, sem ânimo para provar aos outros que não sabem do que estão
falando. Os literatos orkuteros postam, despudorados, versinhos hilários e
bisonhos. E em seu chamado perfil ostentam orgulhosos um poema dum poetão. O
campioníssimo dos patronos versejadores é o Mário, gaúcho bom-mocista cujas
quadrinhas sempre injetam uma injeção de otimismo em leitores propensos às
amarguras da vida e que as donas de casa viciadas em telenovela guardam
carinhosamente no coração.
A cafonice medra na orkut. Amigos classificam amigos e a sensualidade de
amigos por meio de estrelinhas e ao mesmo tempo promovem um mercadinho de
personalidades onde tentam se vender em autopromoção, fazendo poses nobres sob
citações de filósofos e estrofes dos campeoníssimos Pessoa, Meirelles, Ana
Cristina César, Clarice. (Na facebook é a mesma bobajada. O lance por trás de
tudo é “pelamor, gostem de mim um pouquinho que seja!”
Entro na orkut e, clicando à matroca, vou parar de novo na tal
comunidade Literatura. Leio sem vontade o primeiro tópico e fisgo “Mainardi”.
Estarão debatendo aquele rapaz que a cada fim de semana desfere umas cacetadas
em Lula e no peetismo, escolhendo a dedo temas que buscam causar frisson em
seus leitores cuja grande diversão é marcar um rolê na praça de alimentação do
Shopping Iguatemi? Hoje em dia, e na orkut, tudo parece possível. Chacal diz
que Poligono das secas é “pervertidamente divertido”. Então fiquei de ler.
Ainda não tive tempo, milhares de livros aguardam disciplinados em suspenso e
em suspense minha atenção qual donzela cortejada sem que eu, cavaleiro
entediado de existencialismo apodrecido, consiga decidir qual satisfazer
primeiro.
Curioso que sou, vou lá assuntar o que os literatos cibernéticos têm a
dizer sobre o semanal inconformista.
A polêmica gira em torno dum artigo em que Mainardi parece descer a
lenha em Drummond. Fico surpreso, não por Mainardi ser capaz de atacar o vate
de Itabira, pois é um valente e portanto capaz de tudo, e sim por nunca ter
ouvido falar de tal artigo ou de tal paulada.
Por alguma estranha razão, me ponho a imaginar o que o Silvio Santos
teria a dizer do Drummond. E Xapolin Colorado? Quanta gente por aí não terá
desenvolvido conceitos fantásticos sobre o itabirense sem que ninguém
desconfie?
Busco no google. Ah, eis aqui. Crônica de 2002. Acho que ninguém mais se
lembra. Foram tantas as emoções nestes anos.
Outra surpresa: parece que Veja ainda tem leitores. Já se passaram uns 6
ou 7 anos desde a última vez que li aquele manual da Disneilândia. A gota
d'água das gotas d'água foi uma nota numa daquelas páginas de celebridades com
comentários frívolos contra o cantor Renato Russo, sugerindo que o rapaz estava
morto e não sabia, e na semana seguinte, para azar da revista, RR morreu de
verdade e tiveram de tocar às pressas aquele baita panegírico de capa elevando
o cara aos píncaros da glória, para deleite dos leitores e para horror dos que
ainda gostam de prezar um mínimo de coerência. Você pode dizer que, sendo eu um
irracionalista desavergonhado, não tenho direito de exigir coerência de quem
quer que seja. Só posso responder que pelo menos não me promovo como bastião
das causas nobres. E me afortuna um handicap que me isenta dum veredito mais
severo: ninguém me lê. E não ser lido me poupa dos bate-bocas entre
jornalistões da grande imprensa a se desdobrar em malabarismos na tentativa de
manter as contas do patrão no azul enquanto simulam algo que distraídos tomam
por dignidade.
Zap.
Na comunidade Literatura o título do referido tópico é: “Só eu que acho
o Drummond um porre?”
Como vivo estranhando tudo e mais um tanto, estranho. Será um título do
próprio Mainardi?
Pois já começa mal. Na minha terra, eu achava que “ser um porre” devia
incluir os significados que a nossa cabeça naturalmente associa a encher a
lata, tomar um pileque e adjacências, escapar do fardo da realidade, sonhar
acordado, mesmo que só etilicamente. E não entendo muito de meios de
comunicação nem de poetas, mas em se tratando de porre sou mestre. É um dos
mais eficazes antídotos que conheço contra o racionalismo mentiroso.
Zap.
Já virou clichê dizer que Mainardi remeda Paulo Francis, mas de Francis
ele não assimilou a erudição, a cultura ou a verve, digamos, cruzadista e
muitas vezes autocontida para não chocar fregueses mais autossatisfeitos. Mas
pôde copiar o faro para a encrenca e aprender algumas técnicas de
automarketing. A diferença é que Francis não soava fingido qual Mainardi, cujos
textos podem ser tudo, menos convincentes. E Francis tinha um timing
inigualável na autopromoção, sempre tirando proveito circularmente da vocação
de cabotino (ou saltimbanco, como gostava de se descrever), sem pudor de soar
histriônico e sem medo de abusar da própria fanfarronice para tirar bons
efeitos estilístico-sarcásticos. Mesmo escrevendo em jornal, não dava muita
pelota para o papel de jornalista responsável que esperavam dele. (Luxo a que,
obviamente, só quem tem muito poder pode se dar. Ele só veio mesmo a não dar
pelota alguma quando já tinha audiência cativa, também na tevê, e se tornara
habitué de resorts de seus amigos banqueiros e empresários, embora, para quem
olha daqui de longe, tenha pisado com excessiva ênfase nos calos dos nanabos da
Petrobrás e quebrado a cara no affair.) Chutava na direção em que apontasse o
nariz, não se importando se fizesse gol contra, misturando deliberadamente
verdades com minhocas subidas à cabeça direto do fígado, lixando-se para o
factual. Eu ria à farta. Quando criava encrenca com algum medalhão do “cenário
cultural”, então, ficava deliciosamente furibundo, furibundo como já não é
possível ser, porque termos como furibundo jamais farão parte do vocabulário de
2 dúzias de grunhidos dos frequentadores de portais de relacionamento, tendo
perdido a razão de ser depois do politicamente correto e do predomínio absoluto
das novelas como substrato da nossa civilização. Arrumou bons arranca-rabos com
fariseus jornalistas, professores-doutores et al. (Mas não tantos quanto eu
gostaria.) Certa vez o primeiro ombusdman do Folhão, de cujo nome não lembro
nem quero lembrar, houve por bem chamar Francis às falas por imprecisões em
seus artigos. O homem subiu ao seu olimpo e de lá disparou uma saraivada de
apodos letais que terminaram por esfarelar o atrevido. Nunca vi ninguém ser tão
massacrado na imprensa, massacre que prosseguiria ad infinitum se a editoria
não tivesse dado um basta. Curiosamente, Francis era melhor nos artigos que na
ficção. Seus romances não pegaram, não como ele esperava. Provavelmente porque,
embora brilhante, nunca chegou ao Francis S. Fitzgerald que almejava a ser. Ao
contrário de Fitzgerald, seus livros não conseguiram ir além de um encantamento
algo servil e ─ horror ─ jeca (termo preferido dele mesmo e de aspirantes a
francis para espicaçar desafetos) ante os endinheirados do smart set carioca.
Seu melhor, para seu próprio desgosto, é o genial autobiográfico Afeto que se
encerra. Ficou (muito) decepcionado consigo e com todo mundo. Queria que o
ombreássemos aos grandes da literatura. (Quem, escritor, não quer?) Dizia que
as escolas deviam adotar Machado, Rosa e Francis. Pfui.
Com a aproximação da velhice, enlevado no papel de pensador iluminado da
direita, Francis foi passando de peculiar a extremista, exagerando na rabugice
e na prepotência até viajar no caviar como quando reclamava do excesso de
nordestinos e gente feia nas ruas de Sampa, sempre no estilo blasé que seus
discípulos adoravam. (Antes que termos como blasé caíssem na boca do
populacho.) Entusiasmado com a aclamação popular, não raro sofria ataques
totalitários. Seu exclusivismo social fez escola entre órfãos ideológicos em
busca de rumos. O totalitarismo tem solo fértil em gente sem caráter que
confunde a incapacidade de aceitar a feiúra e a sujeira como parte da
existência com bom-gosto e, palavrinha besta, requinte.
Dia desses ganhei um dos volumes da antologia d'O Pasquim e me
surpreendi como o Francis recém-chegado a Nova York era diferente daquele que
anos depois se entregaria vencido ao narcisismo. (Em Minha razão de viver
Samuel Wainer o qualifica de guru da classe média, em aparente acerto de contas
que é insondável aos de fora do círculo. Parece que tachar alguém de guru é
prática meio antiga.) O Francis d'O Pasquim já era exibido, ainda não à
morbidez, com uma força estilística assoberbante que no fim, rico e paparicado,
trocaria pelo autoarremedo. Talvez pudesse ter sido o grande escritor que não
foi se não alugasse o teclado a seus camaradas banqueiros até finalmente virar
foodie e enumerar o cardápio do Four Seasons toda quinta e todo sábado na Folha
e depois no Estadão.
Ainda revisando o Pasquim, também me lembrei de como achava sacal Ivan
Lessa e todos aqueles pseudônimos sem sentido e gracejos bobos. Hoje, ilegível,
daqueles que escrevem bem mas não têm assunto. O pai e a mãe dele eram
melhores.
(Um dia imaginei uma crônica em que Lula lê uma página (umazinha só)
qualquer de um livro qualquer de Philip Roth. Na minha imaginação eu estava
inspiradíssimo, rindo das minhas piadas, digitando sem hesitar, o texto se
avolumando dentro da minha cabeça, as ideias se encaixando. Como quase sempre
acontece, logo deixei pra lá, esqueci tudo que tinha digitado mentalmente e me
desinteressei do assunto. Hoje tentei refazer o exercício, não saiu uma linha,
achei o assunto totalmente sem graça, não tenho mais saco de escrever sobre o
Lula. Ou de ler.)
Andei relendo um dos livros de Francis, Cabeça de papel. São três
Cabeças, sem grandes diferenças entre eles, sobrecarregados de barroquismos e
penduricalhos à la Tom Wolfe sem tutano, excesso de truques e escassez de
recursos, um ritmo acelerado remetendo a uma erudição sufocante para que o
leitor fique meio zonzo, perturbado na marra, sem chance de se dar conta de que
o autor não fala nem dele, leitor, nem dos outros ao seu redor, trama e
personagens transfigurados sob uma estranha ilusão de que não há vida possível
fora das redações e longe dos apês-palacetes da Vieira Souto. (Há, sim. Só que
é mais difícil prospectar. Você tem de ter uma índole meio de toupeira, com
toda a dor que isso implica, cavar além das fachadas dos prédios e das caras,
correr o risco de ficar sem ar lá no fundo.) Se você tem o azar de não ser
rico/poderoso, mate-se. Francis conseguiu tirar uma fina da arte mexendo apenas
com o banco de dados que mantinha na memória e a capacidade sem igual de
engatar a língua diretamente ao pensamento sem circunlóquios, freios ou
filtros. (O que não é tão fácil quanto possa soar aos ouvidos de quem não
escreve a sério.) Em minha releitura, abri o livro e fui indo e quando vi
estava no fim. Isso é, acho, prova de que era pelo menos legível, ao contrário
de nove entre dez astros do firmamento literário do Berção.
Naqueles tempos d'O Pasquim não havia muita opção na imprensona, lembro
de articulistas chatos como o próprio Drummond e Flávio Rangel na Folha,
Raymond Aron imperdível no Estadão dominical cujos artigos deviam equivaler a
umas 2 bíblias e que levava um dia inteiro para deglutir, impensável nos
mequetrefes em que se converteram os jornais de hoje com seus zés-simão e as
inefáveis, as malditas celebridades no alto da primeira página e essa onda de
competir com a tevê, que fatalmente vai aniquilar os jornais. (Prezados
magnatas da imprensa, querem reverter a queda diária na tiragem? Então parem de
mirar quem assiste o jornacional e comecem a escrever para quem gosta de ler.
Kartoffel. Ainda os há, acho.)
O Pasquim foi uma escola estilística, o que não é nenhum achado e
nenhuma originalidade. Muitas das sacadas, truques e bordões que correm por aí
ainda hoje nasceram lá. A maioria feneceu junto com o hebdomadário, ou seja, só
tinha força no conjunto. Exemplo é Sérgio Augusto, para mim ilegível no
Estadão, rezingando faltas de assunto num mansinho que às vezes beira o
rançoso. Millôr era, qual hoje, uma no cravo e duas na ferradura, humorístico e
trocadilhesco demais para ler amiúde, prenunciador do tolo José Simão com suas
piadinhas deliberadamente redundantes em torno das estrelas da tevê próprias
para quem precisa ler várias vezes até entender, contágio da repetição
tantalizante das imagens na tevê e na internet. Henfil era cara digno,
esquerdista se lido hoje. Todos os homens de boa vontade éramos sob a ditadura.
Até, cruzes, Francis, no começo, o que ele mesmo gostava de alardear, hoje
sabido, soando apenas como mais uma verdade dum sujeito relativamente
verdadeiro em suas mentiras e contradições, que é o mínimo que podemos pedir.
Na época, ao vivo, outro papo. Mudou para Noviorque, caiu de quatro ante o
capitalismo. Na época, não lembro direito o ano, uma linha telefônica chegava a
custar, cruzes, cinco mil dólares, telefone era patrimônio, herdeiros brigavam
a foice para ficar com a linha no inventário, famílias economizavam décadas
para ter uma. (FH merece uma estátua para cada uma das privatizações das
estatais. Peetistas reclamam que ele as vendeu a preço de banana. Teria sido
bom negócio para nós pagadores de impostos mesmo que as tivesse doado.
Peetistas hoje estariam pagando 2 mil dólares por um celular se a telefônica
ainda fosse estatal.) Francis em seu diário da corte nos matava de inveja
contando ter quatro ou cinco linhas em seu apê, bastava um telefonema pro
freguês descolar mais uma com três ou quatro vendedores de telefônicas na porta
implorando para ser escolhidos. Com Francis Roberto Campos, que então
chamávamos Bob Fields fazendo coro com henfil, deixou de ser anátema. E o
próprio capitalismo. Talvez algum mestrando da USP se disponha a esquecer o
baseado por algumas semanas e levante até que ponto Francis e congêneres
contribuíram para que preservássemos o que nos resta de urbanidade? Dilma vem
despontando lá longe enquanto tento decidir em qual embaixada pedir asilo.
Francis vivo era meio inanalisável. Como, lilarirari, toda pessoa de
talento autêntico. Esses anos todos passados, dá para ter uma ideia. Podemos
começar pelo espalhafatoso silêncio dos inocentes de bacharéis que se calam
ante o abominável Lula e não param de tagarelar quando não têm nada a dizer.
(Não consigo mais engolir Antonio Cândido depois que ele confessou abjetamente
venerar o nosso pequeno caudilho e sua tirania light, dizendo-o “inteligente”,
como se inteligência fosse elogiável per se.) Não sei se há teses e
dissertações sobre Francis. Talvez algum aprendiz de bacharel tenha acordado da
letargia festiva que é a vida universitária e obrado uma.
Quando ele morreu tive um insight do vazio que ia deixar. Fácil prever,
antes não tinha ninguém. Do Nelson Rodrigues jornalista peguei apenas um tico.
Por que não li as crônicas dele na adolescência? Não se publicavam em Sampa? E
Francis, talvez por ter sido nativo do baby boom dos amadurecidos sob as
reviravoltas do fim dos anos 60, cuidava para importunar o bacharelesco em cada
linha. (Para mim pessoalmente, razão de toda uma vida.) Engraçado quantas
décadas o nosso modernismo, tirante cabras como Mario e Oswald, tardio demorou
para vingar no Berção. Depois de Bernhard, Gombrovicz, Hemingway, para ficar
nos grandes, depois de notas do subterrâneo, ponta-pé inicial do que se
escreveu no século passado, depois do próprio Francis ainda tem gente incapaz
de fugir do inferno do edificante, do bom-mocismo dos encastelados em
capitanias hereditárias em folhões e quejandos.
(Jaguar conta que a primeira entrevista do Pasquim, com Ibrahim Sued,
saiu crua a público porque ele, Jaguar, ainda verde, não sabia o que era
copidescar. Assim inaugurou-se o coloquialismo na imprensa, quase 50 anos
depois da Semana de Arte Moderna. Para variar, outro grande passo da humanidade
movido pela acidentalidade, que nos rege a todos da inseminação do óvulo ao
cemitério, ao contrário do que pretendem astrólogos, marxistas e cozinheiros.
Os jornalões ainda hoje insistem no copidesque para filtrar suas matérias de
impurezas da alma. Quando muito, enfiam um “risos” nas falas dos entrevistados
a título de informalidade. Não adianta, o rigor mortis é a nossa sina.)
Francis era a bête noire de bacharéis e esquerdistas entricheirados em
empresas do estado dizendo-se compadecidos do populacho explorado enquanto
mamam nosso sangue. Salvo engano, não tinha diploma (se tinha, me corrija um
fiscal biográfico aí). Raro o dia em que não espinafrava à insignificância
esses professores-doutores que suam a camisa de tergal e a gravata combinando
para parir três paragrafozinhos sonsos. A cafonice do intelectual bourgeois
obcecado por pregar na parede da sala visível à visita que entra um papel
emoldurado em imbuia, peroba ou outra lenha saqueada à Amazônia para emoldurar
seus troféus de fancaria. Podes crer, nem tudo que macaqueamos dos americanos é
digno de macaquice.
Além de Nelson não havia muitas opções. Escrever coluna regular é fatal.
Exemplos abundam, aí está o Veríssimo e seus gracejos a se repetir ab irato há
séculos. Que é que Veríssimo pensa do que quer que seja? A última opinião que
ouvi dele foi há anos, a favor de Lula (mas pelo menos era uma opinião). É
chato ver alguém inteligente ficar de boca fechada diante de Lula e sua
selvageria benigna, que vai instilando na macacada de mansinho, sem dar muita
bandeira qual seu confrade brutamontes Chávez, mais chegado à bufonaria. (A
última de Lula, no momento em que escrevo, é o bolsa-celular, bônus a quem
participa do bolsa-família, com 7 reais de ligações pré-pagas mensais, além do
que ouso me indignar. Não adianta, Lula deu um nó na tucanada e não vai largar
o osso tão cedo. E, não adianta, a macacada tem o que merece. E Lula demonstrou
que odeia a fundo o País e que nos deseja tudo de pior escalando a alfabetizada
Dilma para sua sucessão (a dona foi assaltante de bancos, será verdade? Jesus.
Morro de medo de armas. Certa vez estava no sítio de um primo quando ele me deu
um 38 para atirar numas latas e fiquei em dúvida se disparava contra a própria
cabeça. Graças aos céus Lula proibiu o acesso a armas de gente como eu). E
Lula, espertérrimo, mantém os sindicatos a filé mignon à custa dos fundos de
pensão e empresas do governo, caso um dia precise duma “mobilização” para
amedrontar as classes médias. O que nunca será necessário, obviamente. As
classes médias, e as outras também, estão e sempre estarão bem quietinhas
comendo pizza de calabresa assistindo o Big Brother.) Veríssimo talvez fosse
grande, tivesse peito. Se reserva o direito de ficar calado. Não é bobo, pra
que se comprometer à toa? Aquelas piadinhas na última página do Caderno 2 são
constrangedoras, joão sem braço face à roubalheira peetista para não dar
munição à “direita”, mais uma vez a ideologia fazendo as vezes das ideias.
O bacharelato despreza escritores que não paguem a devida deferência ao
beletrismo (há séculos combatido por todo escritor que se preze) e ao perene
neoparnasianismo que nos atazana qual praga. Entre outras razões, porque são
refratários ao método, o mesmo método que trouxe o planeta à beira do abismo em
que está agora. (Declaração mais desprovida de método, essa.) As crias que
doutos, cientistas, lógicos e estudiosos engendraram nos últimos cinco mil anos
de civilização, “potencializadas” depois da Revolução Industrial, culminaram
nesta nefasta era da informação de progresso sem limite e esta na distopia
presente. O homem como medida de todas as coisas de Protágoras sifu. A dimensão
humana começou a soçobrar sob a RI com a mecanização da produção até virar
adubo hoje sob a comunicação instantânea diabólica do celular e o lazer
infinito e permanente da tevê e da web e a armadilha da gratificação constante
em que a molecada se viciou. As próximas gerações serão cada vez mais
abstratas.
(Como, infelizmente, em breve terei de partir para sempre deste vale de
lágrimas, sem direito a retorno como querem espíritas e outros místicos
delirantes, tomara que lá no céu tenha tevê a cabo para eu ver como é que meus
pósteros vão se virar. Por aqui me sinto num mato sem cachorro, certo, questão
de vocação. Queria saber, entre outras, que fim vão dar a vovôs e vovós de 150
anos e seus corpitos sarados mantidos a doses cavalares de química mais
escalafobética a cada dia. Pelos sinais ao meu redor, em poucos anos estarão
todos livres do câncer e de outras tragédias e de vírus como aids e mesmo de
degenerescências como alzheimer e parkinson. A perspectiva, parece, é o
prolongamento continuado da longevidade. Só tem um probleminha: os azimovianos
curandeiros não conseguirão inventar um analgésico para o espírito. Nossa
experiência “humana” não tem como sobreviver a mais de cem anos. Há dois meses
perdemos na família nossa avozinha de 96, nos últimos anos eu vendo aterrado
nos olhos dela que o fardo do corpo ia pesando mais e mais e mais, tendo os “motivos”
se acabado todos. A regressão à infância no corpanzil de quase um século é
desesperadora. Prazer, nenhum. Interesse, lhufas. Paparicada dia e noite por
filhos e netos, torcia o nariz, praticamente implorando que o fim viesse logo.
Restou apenas o império do presente, até o passado e o que pudesse guardar de
reconfortante se dissipou. Melanie Klein dizendo que o idoso tem por função
transmitir vivência aos mais novos é lorota. Duvido que alguém de 150 anos com
corpo são e cérebro relativamente lúcido ache algo interessante a fazer. Há
décadas Suíça e Holanda têm clínicas a que anciãos endinherados na casa de
oitenta, noventa e cem acorrem para comprar a peso de ouro uma eutanásia que
lhes permita enfim descansar. É óbvio, e todo óbvio é intolerável, mas não
posso conter o touché de que lutamos cinco mil anos para derrotar a natureza e
tudo que ela nos guarda de nefando, e o trágico só faz aumentar. Me compraz e
consola que tudo pareça estar minguando. Certo, são minhas teorias mais
pessoais e poéticas e esquizóides se comprovando. Tenho pouco, ou nada, a
perder. Sempre tive a morte por companheira nata. (Putz, essa saiu sem querer.
Como digo sempre, a poética ─ não a poesia ─ me dá nojo.) E falta falar dos
chinas. Os caras mal começaram. Estão na revolução industrial lá deles. Mês
passado a ministra da economia chinesa disse que eles precisam gerar 300
milhões de empregos nos próximos dez anos para sustentar a macacada que está
fugindo do campo para as cidades. Holy cow, Lula não consegue gerar 300 sem
destruir metade da Amazônia e estorricar meio Pantanal. Não preciso de bolsa do
CNPq para concluir que daqui a trinta anos, a China líder mundial, mais dois
bilhões irão se juntar aos escravos se esfalfando 16 horas diárias para trocar
de celular no fim do mês, tirando do planeta o que não há mais a tirar,
produzindo everests de lixo que não há onde enfiar, não é preciso nobel para
concluir, o fim se assoma no horizonte. Há alguns anos a crise do petróleo
parecia indicar que os gênios da espécie acabariam por descobrir um substituto
energético que nos salvaria a todos do colossal banho turco regado a ácido
sulfúrico em que vai se convertendo nossa velha Terra, mas eis que Lula, quem
diria, deu de descobrir uma mina de petróleo atrás da outra e com isso os
homens de cérebros fabulosos não se motivam a engendrar a tal da alternativa. E
não falemos também de europeus que já começaram a se autoexterminar porque não
toleram crianças e não querem mais se reproduzir e, se o mundo não acabar,
serão reduzidos a meia dúzia no próximo século. É engraçado que cientistas
malucos aliados aos homens sensatos que fizeram do planeta o que ele é, capazes
de inventar as mais inimagináveis bugigangas para que todos esquecêssemos a dor
intrínseca de viver, sejam incapazes de forjar um spray teratogênico que limpe
o ar num passe de mágica e nos tire desta enrascada. Mas deixemos a salvação do
planeta para o talentoso Lula e estadistas de igual quilate e voltemos à nossa
hilária comunidade Literatura. Eu dizia que... Só um minuto, vou ter de voltar
lá pra cima... Ah sim, falávamos do Mainardi e sua invectiva contra
Drummond.)
É mister reconhecer que o nosso subfrancis se empenha para produzir seus
traques e truques à custa de resfôlegos, cambaleios e tropicões. Vive há anos
de chutar o Lula. (Assim, até eu.) Deve estar duro de arrumar assunto agora que
o pequeno tirano virou unanimidade, mesmo para os deslumbrados que veem Veja.
(Ética é legal. Mas cuidado com o balanço. Ninguém quer prejuízo.)
Para deflagrar suas polêmicas estudadas e pífias, Mainardi criou uma
lista “Temas mais afeitos a gerar forrobodó” e saiu por aí soltando balões
estufados de ar. Não sei que outros papos-furados ele tem jogado para cima de
suas fãs. Se forem da altura dessa aí sobre o Drummond, então estamos mal.
Certa vez bati boca pela orkut com a presidenta do fã-clube do cara,
perguntando se ela não tinha vergonha de pertencer a um fã-clube, aquela
piadinha do Marx, mas essa é, acho, outra história. A boçalidade que impera na
orkut me fascina. A orkut se presta legal a fins antropológicos. Acho que o professor
DaMatta deve ter parado de observar os brasileiros na rua e agora vive clicando
em sites de relacionamento, que de relacionamento não têm nada. A comunidade
Fora Lula com seus maníacos histéricos esgoelando palavrões e exigindo golpe
militar conseguiu a proeza de afugentar para as hostes lulistas internautas que
estavam indecisos. (Golpe neste terceiro milênio? Em Honduras pode ser.)
Mainardi logrou o mesmo feito, só que sozinho (que talento, dio mio), depois de
ficar anos dando a queda de Lula por certa e queimando a língua a cada
previsão, até virar contraditório profissional e tentar vender seu peixe com a
pose do intelectual errar-é-humano. (Virou moda com Sartre. Todo mundo cai ante
uma profissão de humildade.) Veja teve de mandar o rapaz segurar a onda porque
estava inquietando os frequentadores do Iguatemi que veem a revista. Tudo que o
pessoal quer é tranquilidade para torrar 2 pilas numa calça jeans de grife sem
dor na consciência. Obsessivos assustam.
Parece que Mainardi não existiria como tal não fosse um empurrãozinho
dado por Francis lá nos idos dos 80 ou 90. Tinham feito amizade e Francis
devotava lealdade canina aos amigos, ao que parece sem olhar os dentes. (Fazia
propaganda para o Maluf dizendo que seria o maior presidente do Berção, o que
eu entendia como licença poética. Aos grandes se deve perdoar (quase) tudo.
Inclusive Drummond. Há uns tempos andei tomando umas e outras cum malufista,
rapaz bem inteligente, prova de que ideologia pouco tem a ver com inteligência.
) Não sei exatamente como, onde ou quando Francis se deixou encantar por
Mainardi. (Certa vez também desandou a elogiar Matinas Suzuki Jr., que logo
depois virou editor da Folha. São difíceis de entender os caminhos e
descaminhos que trilham esses barões da imprensa.) Dizem as boas línguas que
tem algo a ver com Gore Vidal. Não posso garantir, pois não estava presente.
Zap.
Mainardi é daqueles que gostam de bater o martelo. Dá marretas a torto e
direito com gosto. Quando leio me vejo diante dum juiz. Imperial. Severo, quase
impiedoso, como soi ser todo ginete da justiça. Se pudesse faria uma limpeza
lírica no mundo, talvez equivalente à étnica outrora intentada pelo vegetariano
Adolf. “Comigo não tem conversa” é o recado que parece querer passar. Presta-se
à perfeição ao seu papel de guru. (Fiéis que cultuam gurus políticos são os
mais derrisórios, pois se acham in, eleitos iniciados numa verdade
fora do alcance do coitado do outsider. Estão no meio do rebanho como qualquer
ovelha, mas em vez de balir, rugem. Deve ser algo relacionado a vocação, mas
não deixa de ter suas vantagens.) Escolhida a vítima, vai assentindo vorazmente
com a cabeça em cujo interior certamente jaz alerta um poderoso cérebro de cuja
perspicácia os pobres drummonds deste mundo jamais lograrão fugir.
Logo no título o soberano decreto: chega de Drummond. Quis desistir,
falei para mim mesmo, não vale a pena. Esperei uns minutos. Tudo bem, aquela
estátua em Copacabana é assaz cafona. Mas Drummond não tem culpa. (Embora
duvide que se opusesse, vivo fosse. Eu também não me oponho se quiserem erguer
uma em minha homenagem na praça da matriz de Heliópolis.) Fui tomar um balla
12, traguei logo 3, para não dizerem que não sou um rapaz de boa-vontade.
À parte uma ou outra tirada sobre o passado pregresso de Drummond ─ nada
mais calhorda que escarafunchar o passado alheio para levantar pecados. Quem
nunca pecou, que atire a primeira boutade ─, não se dá o trabalho de documentar
suas graves acusações. Duvido que suas leitoras saibam onde o galo canta. Sendo
um juiz austero mas, com perdão do pleonasmo, justo acredita que seu veredito
seja suficiente. Autoexplicativo em sua sumariedade, parece comungar do clichê “Decisão
de juiz não se discute”. Drummond é idiota e pronto. Reduzir a pó uma das
maiores personalidades da literatura nacional parece ser apenas um aperitivo
para tão insaciável sede de justiça. O gorduchote Mainardi, trombeteiro da
iniciativa privada, vai lambendo os beiços enquanto devora o raquítico barnabé
Drummond e seus pendores socialistas, antecipando o banquete de amanhã. Mais
que implacável, se pretende iconoclasta. (Ao que parece, aspiração de nove
entre dez estrelas da intelectualidade.) Fora com os mitos! quer esgoelar.
Chega de mentira sáfica neste país! O paladino da antilira brasílica veio para
botar o dedão na ferida. Drummond não passa dum verme sempre disposto a
inocular o vírus da mentira trovadoresca no pobre leitor. Verdadeiro, só mesmo
João Cabral de Melo Neto e sua secura caatinguense, tudo dentro do sacrossanto
espírito democrático. Afinal qualquer um pode falar o que lhe der na telha e
ninguém tem nada com isso.
Zap.
Drummond meio que perdeu a mão na velhice. Fez coisas mesmo
constrangedoras, versinhos supersentimentalóides aqui e ali, aquela proverbial
desandada tentando emular os concretistas. E daí? Seu fantasma não precisa
passar a eternidade provando isso e aquilo a quem quer que seja. Ao longo da
vida escreveu bem e mal como qualquer outro poeta/escritor. Isso não vai mudar
só porque os espertinhos de plantão dizem que não devia ser assim. Não há
escritor que nunca tenha entornado o caldo. Todos acabam cometendo barbeiragens
cedo ou tarde, se repetindo, se autoplagiando, tentando ressuscitar aquele
primeiro estado de espírito em que a energia parecia infinita e o olhar era capaz
de identificar o novo onde quer que pousasse. Não é batatinha assumir que o
champanhe ficou sem gás, nenhum dos grandes escritores que já li, aqueles
notórios à parte, resistiu à tentação de mais uma requentada no angu. Sempre
chega a hora em que o escritor deixa de escrever em primeiro lugar para si
mesmo para querer contentar os outros, mendigar uns elogios, reconquistar os
suspiros da vizinha, o que qualquer outro em seu lugar faria. Por essas e
outras Rilke aconselhou ao jovem poeta Kappus: “Leia o menos possível trabalhos
de crítica. Obras de arte são de infinita solidão; nada as pode alcançar tão
pouco quanto a crítica”.
Zap.
O chato nesse ataque de Mainardi é o motivo: o pusilânime Drummond teve
a fraqueza de misturar poesia com fantasia, sucumbindo a rompantes esquerdistas
ao longo da carreira. (Muitas das pessoas inteligentes que conheço passam ou
passaram por isso. Monolíticos me dão sono.) O esquerdismo franco ou velado em
algum momento da vida é o que une os alvos de Mainardi, basta ver o rol de suas
vítimas.
Daí a mesmice das catilinárias. A previsibilidade. Em sua próxima
crônica, Mainardi vai atacar um ex ou atual esquerdista tão certamente quanto o
trânsito de SP ficará engarrafado amanhã cedo. Afinal é o que as fanáticas que
o veem esperam dele. Que delícia ter uma plateia cativa. E que desgraça. A mim
me sufoca.
Gurus, sejam da esquerda ou da direita, fazem o que seus devotos esperam
que façam. Exercem papeis. Seu script está escrito e não há como fugir dele.
Imaginar que algo assim seja possível me dá falta de ar. Depois de ter lido
essa gente uma vez, não há nada que me faça ler uma linha uma segunda vez.
Tenho certo respeito por Reinaldo Azevedo, cuja inteligência e cultura salta
aos olhos. (O melhor ataque à famigerada reforma ortográfica que li é dele,
texto que eu gostaria de ter escrito.) Dos gurus de Veja, o melhor disparado é
Augusto Nunes, autêntico estilista, domínio magistral do vernáculo, engenhoso
na articulação dos parágrafos, afinado nas tiradas e nos apodos (“Exterminador
de Plurais” e “Base Alugada” são hílares), bem diferente dos textículos áridos
e desenxabidos de Mainardi, urdidos sob indisfarçável penar. O que empana o
brilho é aquele espírito de corpo abjeto como qualquer outro espírito de corpo,
o compadrio com que um levanta a bola para o outro. Que eu saiba, quem pensa
tem de escrever o que pensa, não formar aparelhos. E aquela claque que
diariamente baba comentários inanes em seus blogues. Jesus. A diferença de
Francis, além da genialidade, é que não toleraria a cambada de puxa-sacos a
seus pés, e artista, capitalizava as próprias contradições. Brutal diferença.
Sempre que escrevo celebro comigo mesmo a suprema liberdade de não ter
de dar satisfações a ninguém. Não preciso pensar se fulano está alinhado desse
ou daquele lado antes de enaltecer ou espinafrar o cara. Sou livre dos malditos
“parâmetros” dos carreiristas que não podem dar um passo sem antes fazer
cálculos mil sobre a conveniência ou inconvenicência do que diz. Believe me,
maior delícia não há. Me recuso a entrar para gangues, legiões, agrupamentos,
patrulhas ou milícias. Esse tipo de coisa me dá claustrofobia.
Gurus ocupam espaços. Nisso não diferem um tico das caminhandos e
libelus dos meus tempos de ECA. (Às vezes avisto ex-colegas bem-sucedidos em
algum jornal ou tevê por aí. Parece que a autodisciplina stalinista deu
frutos.) São todos bispos e rainhas no grande tabuleiro ideológico e não podem
dar tregua ao inimigo.
A divisão das torcidas já deu. Jesus, quem consegue levar Olavo de
Carvalho ou Marilena Chauí a sério? Passar a vida arremessando tomate nos
adversários talvez seja bom para quem é chegado a uma confraternização, os que
não se avexam de mugir no meio do rebanho. Tenho horror a tudo que cheire a
ordem unida.
A maioria desses fanáticos escolhem seu lado político religiosamente.
Pensam que sabem por que pensam o que pensam. (Com perdão pela recaída nos
efeitos fáceis.) Direitistas defendem a livre iniciativa como bálsamo geral,
esquerdistas dizem que o estado deve intervir para proteger os mais fracos.
Todas essas ideias não passam de abstrações, naturalmente. Só existem em livros
e em discursos no Congresso. Incomprováveis, como muitas outras. Basta olhar
para trás e ver. Mas olhar com coragem, não olhos embaçados de fantasias ou cifrões.
Na minha cabeça confundo capitalismo com catolicismo e socialismo com
islamismo. O pessoal se inflama contra ou a favor de Lula como se não tivessem
outra coisa a fazer na vida. Lula não foi o primeiro nem será o último dos
nossos flagelos. Lula é o Brasil. Não há purgante racionalista que nos livre
disso. Dia desses FH causou comoção alertando em artigo no Estadão para o
perigo do continuísmo lulista. Mais uma vez os leitores babaram. Só que, bidu,
mais uma vez FH se esqueceu de quem foi o inventor da reeleição, a mais
traumática ruptura da ordem política dos últimos tempos. É fácil resolver
pepinos num artigo de jornal.
Leitores de jornais e revistas e membros de comunidades respondem a tais
artigos e a tais blogs citando Sócrates, Nietzsche e outros menos cotejados, só
para comprovar que vivem num estado idealizado, saudosos do tempo em que podiam
fantasiar com belas adormecidas. Que bom seria se todas as nossas contradições
pudessem caber numa citação, afugentando nossas dúvidas bestas para longe. É
gostoso ter só certezas. Nos sentimos seguros de que estamos no caminho certo e
o nosso mundo é indestrutível.
Pena que essa ilusão da indestrutibilidade esteja levando nossa Terra à
destruição. Os hipermanda-chuvas que vivem defronte o Central Park, capazes de
movimentar 1 trilhão de dólares num só dia e decidir os destinos de países
inteiros num clicar de mouse, estão se lixando para o fato de que daqui a 5
anos centenas de espécies de peixes e mamíferos terão deixado de existir ou que
nos últimos 40 anos os oceanos perderam metade de sua capacidade de reciclar
poluição e esgoto ou que o aquecimento climático causado pelo gás carbônico
está absolutamente comprovado apesar das negativas do Lula americano, Bush, e
seu sucessor Obama. O único consolo é que nem mesmo essa gente poderá escapar
ao Tsunami Final.
Discutir ideologia para mim faz tanto sentido quanto falar de moda. Os
discursos dolorosamente vazios de políticos primários no Congresso e o
arrazoado enjoativo de articulistas nos jornais equivalem a um desfile de
Giselle Buenchen na passarela. Enfarado com o que se encena no palco, olho para
o público. Parecem meros viciados em adrenalina. Precisam reassegurar dia após
dia que seus ídolos têm brios e não temem a luta. Arrancam os cabelos
discutindo o fim de Fidel. Qual é a importância de Fidel na minha vida?
Nenhuma. Certo, o campeão de discursos quilométricos serve de inspiração para
evos e chavez. Evos e chavez também não têm importância alguma. Falar dessa
gente é tão inútil quanto falar de Lula. Todo esquerdista e direitista que
conheço é esquerdista ou direitista porque não suporta não ser alguma coisa.
Não ter um idéologo a lhes ditar o caminho é o mesmo que flutuar no vácuo,
intolerável como renunciar à ideia da existência de deus. Saber que há um ente
acima do bem e do mal, em permanente vigilância, onisciente, onipresente, ser
tão perfeito que sua própria perfeição nos impede de duvidar de sua existência,
é tão reconfortante. Atenua um pouco o desamparo angustiante em que a maioria
de nós vive do primeiro ao último dia de nossas vidinhas de formiga mas temos
medo de confessar porque em nossa fragilidade não podemos admitir que somos
frágeis. Alguns se dão até o luxo de dedicar suas vidas ao estudo de Derrida em
busca de algo que faça sentido.
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