Onde estão todos?

Não se angustie.


Todos estão onde todos estão.

(Que é que você acha de eu encerrar esta postagem exatamente aqui? Se o fizesse, você ficaria sem entendê-la mas eu, em contrapartida, faria alta literatura, embora para consumo estritamente pessoal, e, de minha parte, estaríamos conversados e, de sua parte, seu olhar buscaria rapidamente uma base, mas, você sabe, um escritor, grande ou pequeno, não deve se preocupar com a parte alheia. Na literatura, o problema do leitor sempre será do leitor.)

Naquela minha épica era de garoto solitário, todos estavam no salãozinho de reuniões do conjunto de casas e eu estava somewhere alhures somehow conversando comigo mesmo tentando abraçar essa imensa solidão que nunca coube em mim e encostar os dedos das duas mãos do outro lado, negociar, ver se ela, por uns momentos que fosse, podia me aceitar como digno de misericórdia, me dar uma trégua assim de colher de chá, que mal podia haver? eu não era tão ruim que não merecesse uns minutinhos de alívio, mesmo na farta escuridão da rua, longe do salãozinho de reuniões onde todos sempre estavam e não poderiam estar senão ali.

Todos continuam onde sempre estiveram e ainda assim continuo me surpreendendo que todos sejam e tudo seja assim.

Eu também.

Meus braços continuam enlaçados na ampla pança deste mostrengo da minha solidão e continuo a tentar que as pontas dos meus dedinhos se encostem do outro lado.

Posso, como sempre, ouvir seu coração palpitar. Sentir seu cheiro de suor. Ouvir seu hálito entrando e saindo por sobre meus cabelos.

Fomos feitos um para o outro.

Eu, para a minha solidão. Minha solidão para...

Oh não.

Natal

Vinte e cinco de dezembro. Manhãzinha-zinha-zinha. Estou deitado, fingindo que durmo. Finjo a mim mesmo ou não sei pra quem. Sei que me engano. Passamos uma cacetada do nosso tempo nos iludindo, sobretudo nas coisinhas mais idiotas e com as quais a encenação é ainda mais eficaz porque, sendo uma besteirinha, não nos deixaríamos enganar.
Vinte-e-cinco-do-doze. A data pisca de longe nas folhinhas, neon básico, dos que não curtimos o Natal fingimos não ter importância mas sabemos estar apenas fingindo, em nossa simplória circularidade pessoniana.
Espírito natalino. É inevitável ler ou escutar ou pensar nessa expressão, só para em seguida sentir algo dolorido algures no estômago. Pior que o Natal são as explicações que uns quinze dias antes começam a pipocar de todos os lados, na tentativa de enquadrar o antinatalino, esse ser esdrúxulo e desajeitado que não cabe mais em lugar nenhum. Nos jornais, indefectíveis reportagens sugerindo alternativas aos incapazes de confraternizar com o(s) próximo(s) e que nos últimos anos vêm me dando uma sensação de deslocamento gauche cada vez maior. Piores que essas só as reportagens sobre como fugir do Carnaval. Ninguém foge do Carnaval neste país – nem que você se enterre numa mina de chumbo abandonada a 500 metros de profundidade no meio da Amazônia. O desgraçado gruda na tua medula feito doença incurável e você, melancólico duma alegria insoluvelmente perdida n’algum escaninho do passado, fica lá olhando os carnavalescos e se perguntando quem é que está doente nessa história.
Mas o Natal é mais contagioso. Toda criança classe-média família-cristã está inoculada do vírus e não há vacina que cure. Se tem algo na tua vida que você pode chamar de “experiência” é ele. À medida que vamos crescendo e dando tino das palavras até chegar aquele dia em que todos, sem exceção, chegamos em que paramos, como por milagre, de cismar com as altas pilhas de sons de significado enigmático e os aceitamos, já em forma de conceito, dentro de nós como caroços que somos – e seremos daí em diante – obrigados a engolir, a associação de Natal e “experiência” é também cada vez mais natural e também chega o dia, tão infalível quanto o da morte, em que você deixa de estranhar todo aquele afã no fim do ano.
Provavelmente é o que de mais genial e eficiente inventaram para enganar as crianças. O logro pela sedução. É inebriante feito um licor fantástico que te tira da pasmaceira angustiante do dia-a-dia, te abrindo possibilidades mágicas. Depois dum interminável ano em que não houve uma só chance de fugir da perseguição implacável da realidade, finalmente vem chegando mansa e alvissareira a época do ano em que me permitem realizar meus sonhos, esses entes inalcançáveis que vivem pairando em cima da minha cabeça feito virgens angelicais suplicando para ser defloradas.
E tem aquela dobradinha. Natal-barra-Ano-Novo. Par Perfeito. Tão perfeito, que são um só. Fecho de Ouro. A não ser que você tenha levado bomba na escola – e aí não há magia que te afaste das torturantes labaredas do Diabo –, o Natal – especialmente Papai Noel – é a prova de que, sim, a felicidade existe. A vida, afinal, não se resume à renúncia mais apática do que estoica mas inescapável aos rarefeitos prazeres em conta-gotas a que temos iniquamente direito. O sujeito que pôs o Natal perto do fim do ano não o fez ingênua ou arbitrariamente. Foi sacada de mestre. O pai dos marqueteiros modernos.
De repente – uma longa e dolorosa repentinidade –, a razão. E vinda por um caminho tortuoso e sombrio que daí por diante também parecerá não só natural mas também rímica: a decepção. E ambas, R&D, passam a fazer outro par perfeito na tua existência – amargo mas perfeito. E você acaba se acostumando – sempre que tem a chance de espiar dentro do mecanismo vago e invisível (mas que sabe existir) das coisas, você fecha os olhos e espreme os lábios, decepcionado, esperando a seca/instrutiva bofetada da realidade. E também aos poucos aprende que espiar dentro desse mecanismo angustiante não é prerrogativa – é danação. Até que chega o dia em que deixa de ter consciência do mecanismo. Sim, é quando – na pitoresca linguagem dos explicadores do mundo – você o “incorpora”. No meu caso, não incorporei – engoli. E desceu. Na marra, fazendo um nó nauseante na garganta. E se instalou algures em meu estômago.
Quanto aos diferentes dissabores que vão se juntando dentro da nossa cabeça em pares perfeitos, que por sua vez passam a formar fila – e dependendo do freguês, várias ou inúmeras delas –, cada um de nós tem os seus, cada um de nós, rico ou pobre, forte ou fraco, amarelo ou vermelho, nos versos ordinários e fáceis daquela toadinha que virou mais um intolerável hino natalino e que alguém na vizinhança escuta no último volume e berra a pulmões cheios no que se tornou o flagelo dos tempos modernos, o mais bestial fruto nascido do coito das civilizações ocidental e oriental: o caraoquê. O autor da toadinha, aquele ex-beatle que “cantava pela paz” e que, escutando alguém às suas costas chamar “Mr Lennon”, se voltando e recebendo seis balaços incandescentes nas vísceras, deve ter prontamente associado aquele momento fatídico a outra canção que compusera anos antes, “Happiness is a warm gun”. Yes it is, Mr Lennon. God, se isso não é um Par Perfeito, então não sei o que é. E foi uma morte heroica para quem pretendeu ser sub-herói numa era de sub-heróis pífios. Nós modernos e nossos mitos de meia tigela. No frigir dos ovos de tartaruga a apodrecer nas praias de Ilha Bela, não tem importância alguma para ninguém. Mas serviu para passar o tempo da moçada da minha geração e me dar assunto para mais um parágrafo.
E você, pia leitora (se me permite uma despretensiosa citaçãozinha a Machado), não vai deixar o “dissabores” aí acima passar batido, claro. Como você sabe, sou obsessivo, cioso e perfeccionista, e não cometeria termo tão grosseiramente fora de moda. Meus erros, quando os perpetro, não são tão evidentes e em geral consigo dissimulá-los – satisfatoriamente ou de modo que não causem muito dano – de mim mesmo e dos outros. Em minha experiência objetiva ou não nunca tive dissabores na vida (pois, como fator adicional de complicação, os dissabores, quando ocorrem, são raros e atingem nada menos que a vida e não uma outra dimensão mais modesta do que somos, se tornando tão indissolúveis quanto as parelhas de que falávamos bem lá trás). Acabrunhado, abro meu aurélio eletrônico e procuro um substituto à altura para “dissabor”. Mas os sinônimos disponíveis – “contrariedade, aborrecimento, desprazer, amolação” – tampouco dão conta de refletir minhas aflições. Nenhum suficientemente coloquial. Ao contrário, cada um deles é palavra que só existe em dicionário, vegetando qual fungo sob a proteção e na sombra dos outros milhares de vocábulos inúteis, todos sem aplicação possível no cotidiano. E se eu insistisse em usá-los, leitora castíssima, você certamente diria que meu texto recende a bolor. 
Além de serem nativos dos dicionários, esses termos moribundos acham-se amiúde também em autores antigos, obviamente. Quando estamos em perseguição da “realidade”, nada mais frustrante que um almeida-garrett e seu vocabulário soterrado sob a poeira do tempo e o dióxido de carbono dos automóveis e o alarido dos programas de auditório na tevê. Ainda ontem dei com um romance dele na internet, comecei a ler e já no segundo parágrafo senti falta de ar. Tudo bem que o rapaz não foi lá grande coisa nem no seu próprio tempo, mas a sensação de asfixia aflige também os gênios. Até Machado – se você não for apenas um pesquisador ou professor lendo o homem por dever de ofício – tem trechos rançosos.
Quem está atrás da dona Realidade – meu caso quase o tempo todo –, há de evitar enxergá-la por retratos em branco-e-preto, que apenas mostrarão a velha senhora de espartilho e merinaque se aprontando para vestir a saia-balão, ao lado dum mancebo de nome remoto e pitoresco ostentando bastos bigodes e espessas suíças. Na certa vai querer um quadro menos obsoleto. O que é igualmente difícil de achar.
A moçada, fugindo do prolixo, caiu matando na esqualidez como estilo da época. Claro, tem todo aquele plá de dicotomia forma-fundo, lemas tomados a cru de peculiaridades americanas exóticas como “menos é mais”, o escambau, plá sobre que a esta hora da manhã não me apetece discursar. Pode-se dizer que a rapaziada light hoje em dia esteja escrevendo lean tentando alcançar o clean, ou vice-versa (não sei). E – para usar uma palavrinha que outro dia li novamente em Machado e me encantei – salvante cobras como Dalton Trevisan, muitos dos que estão brotando aqui e ali c’uma forma que eles mesmos batizaram de “despojada”, se dizendo – ou sendo apontados pela mídia incansavelmente deslumbrada – minimalistas, se mostrando horrorizados com a prolixidade arcaica, ressequindo a gordura para chegar além do osso, enxugando o excesso para atingir o nada, bien, muitos destes são apenas semiliteratos.
A falta de técnica pode ser uma técnica em si. (O que, claro, é logicamente impossível e passa a ser uma técnica in its own right, gerando automaticamente um claro-escuro infinito.) Bom é o texto que não denuncia a própria técnica. Quando lemos alguém de talento, em geral nos comovemos ou reagimos de qualquer outra forma que o miserável quer que reajamos, nos lixando para a técnica que ele usou para nos engambelar. In other words, não damos a mínima para a forma. Essa coisa de forma-conteúdo é papo-furado de professor de letras que precisa justificar o salário. Mas é também aí que flagramos os excessos do nego talentoso, mesmo quando ele é genialérrimo. Digo isso pensando em certos trechos da busca perdida de Proust em que ele carregou a mão naquela torrente ao mesmo tempo doce e comovente e densa e extasiante de pensamentos inexauríveis. Mas não admira. Eu, se tivesse nos dedos dez por cento daquele controle infernal da memória, da cabeça, do coração e das palavras, não deixaria por menos. Abusaria ainda mais. E provavelmente entornaria o caldo.
Tem, claro, toda aquela lengalenga de que difícil é ser simples. Só. Nosotros que não somos gênios, fiquemos no feijão-com-arroz, maneirando no sal, evitando a pimenta, nos contentando em escolher as palavras com razoável precisão e parcimônia, o que, como sabe qualquer um que alguma vez escreveu algo na vida, já é uma bela duma proeza. E, claro, sair da difícil arte de escolher palavras rumo à própria dificuldade de escrever não requer mais que um passo. Que, como bom perfeccionista, gostaria de não me furtar a dar. Mas a que me furto mesmo assim, pois, como você há de lembrar, é de manhãzinha, ainda estou na cama e meu sono já vai passando.
E você, dona leitora, na certa percebeu também que me perdi completamente do meu assunto original, me enrolando numa maçaroca danada, me aventurando temerariamente em filosofices e até em teoria literária, tema de que, como você deve ter sacado, não manjo lhufas. A, caprichosa cabecinha oca. Vive me aprontando vexames. Meu plano original era desancar Papai Noel, lamentar o declínio da tradição, condenar o consumismo exacerbado de hoje em dia, essas coisas de que todo escritor deve “abordar” nessa época do ano. Quando dei por mim, estava descendo o ferro no Proust, de cuja busca, confesso, li não mais que uns trechinhos, pulando aqui e ali à procura de algo que me dissesse pessoalmente respeito.
Por isso, acho que vou ficando por aqui. Como sou sujeito impulsivo e às vezes desregrado, preciso me conter, senão logo terei outra recaída, falando do que desconheço. Além disso, estou prestes a abrir os olhos – e depois que abro os olhos, fico uns bons minutinhos sem pensar em nada. E como o vizinho fã de Mr Lennon resolveu desligar a vitrola e ir fazer algo útil na vida, vou deixar para outra ocasião o Natal, o espírito natalino, a nossa índole irrequieta que oscila do nazareno ao nazismo em questão de segundos. Se você não se importa. 
E já não era sem tempo. Percebo apreensivo que estou retornando ao meu estado normal de acidez fatigante, como já deve estar patente. Acontece todas as manhãs. Da cabeça a acidez desce para o estômago. O sono vai sumindo n’algum canto aqui dentro, talvez chupado por um ralo interno do qual não tenho ciência, e dando lugar a uns incomodozinhos. Com o passar dos anos aprendi um truquezinho para me livrar da indisposição matinal – ingerir em jejum uma caninha pura e sem gelo. Antes que a sóbria leitora se espante com tão explícito pendor etílico mal o sol abriu os olhos, me apresso a esclarecer que, sem uma cachacinha logo cedo, fico um pouco rabugento. Um tiquinho de nada, mas fico. Nada de alarmante, porém. Outra agora, só na hora do almoço – que, aliás, já está chegando. Faço esse sacrifício pelos outros, naturalmente. Você sabe o quanto é duro aguentar a rabugice alheia. Pior que isso, só aguentar a própria. E não vou esconder que alguns parentes já testemunharam que fico até simpático quando entorno umas e outras num desses casamentos que acontecem de dez em dez anos na família. E, ao contrário do que você pode ter concluído, soberba leitorinha, tampouco sou beberrão. Não é apenas nos citados casamentos que encho a lata, admito. Mas em geral sou um cara comedido.
Bem, como estava dizendo, vou ficando por aqui. Antes, porém, só queria esclarecer que essa acidez a que me referi, passo a maior parte do tempo tentando me safar da miserável. Ela me esmaga os pensamentos, fazendo deles uma massa homogênea e informe e grudenta e inútil e...
A, com licença, estão tocando a campainha. Justo quando ia finalmente me despedir. Sacudo a cabeça. De leeeve. Leeeeeeve. Beeem leeeeeeve. A campainha toca. Já vai, porra, grito por dentro, com preguiça de acionar a voz (que em geral só ponho em uso no período da tarde). Odeio gente que não espera pelo menos um minuto inteiro antes de enfiar o dedo na maldita pela segunda vez.
Depois da irritação, o espanto. De novo ce esqueceu de arrancar a campainha do portão! me recrimino, soltando uns palavrões interiores contra minha própria mãezinha. É sempre assim. Toda vez que apertam a campainha, juro que agora chega, vou acabar é já com essa tortura. Depois, sei lá por que, acabo esquecendo. Até quando ce vai ficar se tapeando? me faço pela milésima vez a pergunta que me recuso a responder.
A campainha toca a terceira vez. Já estou diante da porta, olhos espremidos, bufando, rangendo os dentes. Devido ao treino que tenho feito todas as manhãs, em alguns segundos me acalmo. Faço uns trejeitos até apagar do rosto a expressão assassina. Abro a porta. Um velhote no portão me vê e estende o braço. Abre a mão.
Que é? pergunto sem abrir a boca, sacudindo a cabeça num gesto seco. Ele fecha os dedos dentro do punho e torna a abri-los. Esmola? pergunto, agora com a boca. Ele faz que sim.
É natal, digo a mim mesmo enquanto volto ao quarto, tentando conter a gana de enxotar o inoportuno com um palavrão. Apanho uma moeda no bolso das calças, visto as calças, volto para a porta. O velhote continua de braço estendido.
Saio para o dia, protegendo os olhos da luz do sol, na cabeça martelando é natal, é natal. O velhote, olhinhos opacos cintilando. No alto da cabeça, um gorro imundo e ensebado. Cabelo e barba brancos, pardos de sujeira. Às costas, um saco gorduroso qual o gorro.
- Quer uma xícara de leite? – pergunto e me assombro. A pergunta saiu da minha boca? Ainda estou dormindo, acho.
Faz que sim com a cabeça. Abro o portão, entra, passa por mim. Indico a porta com o braço. Se põe em movimento, passinhos miúdos e pressurosos e prudentes.
Entra na sala, entro atrás, digo para sentar no sofá, senta. Vou para a cozinha, abro a geladeira, apanho a caixa de leite, ponho leite numa xícara, adiciono café, açúcar, mexo, esquento no micro, volto para a sala.
Estendo a xícara. Apanha e sorve, me olhando maravilhado e humilde.
Sento na poltrona e fico olhando. Desvia o olhar para a tevê, assistindo como se estivesse passando algum programa.
Acaba o leite, fica lá parado olhando a tevê. Quer mais? Faz que sim.
Volto para a cozinha, etc. Acaba a segunda xícara. Quer mais? Não. Quer comer? Sim.
Levo ele para a cozinha, faço sentar. Abro a geladeira e tiro manteiga, queijo, iogurte, sei lá mais o quê. Pego pão, bolacha, doce de goiaba. Apesar de desdentado, come tudo depressa e com facilidade.
Sento diante dele na mesa. Como o senhor chama?
Noel, diz.
É brincadeira?
Faz que não.
Noel Ferreira Silva.
Trouxe um presente para mim? debocho, inerme.
Faz que sim.
Sorry, paciente leitora. Não consegui resistir. No fundo sou um jeca, não nego. Até os mais insensíveis e cínicos feito eu tem suas recaídas. Afinal até hoje não esqueci aquele triciclo vermelho e branco que estava no meio da sala quando acordei e pulei da cama e saí correndo do quarto para ver se meu presente estava lá.
Quem deu? perguntei.
Papai Noel, meu pai disse.
É nada. Papai Noel não existe.
Foi, sim.
Acreditei.
Tenho culpa se a porra da cena ficou grudada algures em meu coração?


Quarenta e um

DEFINITIVAMENTE, não entendo internautas. Não entendo membros de redes sociais. Não entendo blogueiros. Não entendo blogueiros que se pensam e pretendem se mostrar sensíveis, poetas, portadores de visões especialíssimas do mundo.
Não entendo qual lógica seguem. Sei que não é a minha e é tudo que sei e saber algo que não é não é saber muito.
Espero que minha última frase acima os confunda.
Se pudesse, os atrairia para a beira dum precipício, ficaria esperando que tivessem então um insight do mundo sensível perdido.
Não entendo, entre mil outras coisas, uma gente de índole literária aliterária E antiliterária. Gente de ideologia literária que não toma conhecimento da base, do fundo, da partida e do fim: a palavra.
Não entendo gente literária cuja palavra tem sua ortografia violentada, seu lugar ignorado, sua ordem trocada, seu significado desprezado, sua sacralidade aviltada.
Não entendo gente literária em que a complexidade da sensibilidade artística é contrabandeada pelo fascínio da conectividade que pede urgente uma teclada mecânica como resposta mecânica a uma postagem mecânica cujo conteúdo introspectivo, reflexivo é nulo.
Não entendo gente literária em que uma postagem de boa vizinhança é enviada apenas para suscitar outra postagem de agradecimento e a seguinte para provocar uma outra numa circularidade que se autoalimenta do impulso clicatório, gerando no pobre internauta uma eterna ansiedade pela próxima réplica.
Não entendo gente literária digital em que o digital é tudo e o literário é nada.
Não entendo gente literária que adora escritores e poetas por sua fama e não por suas obras e ideias, na mais decepcionanante rendição ao mais grotesco culto à celebridade dos fofoqueiros da tevê.
DEFINITIVAMENTE, não entendo internautas literatos e sua estranha concepção de que literatura é só mais uma desculpa para concretizar a "experiência" digital.
Os internautas fazem, certamente, parte do mundo da palavra abolida. São ágrafos sob o domínio de uma hipnose eletrônica.
Literatura é palavra e palavra é pensamento. As microsofts ainda não inventaram um sucedâneo.

Alberto Segundo

Fui incoerente, não fui?
Cara, tenho nojo de quem dá lição e não vou lhe dar.
Simplesmente veja os dois contextos em que eu disse uma e outra coisa...
...e veja se faz sentido.
Pra mim faz.
Mas, olha, fazer sentido prum poeta não quer dizer nada.
Aliás, fazer sentido não quer dizer porra nenhuma pra ninguém, em se tratando de literatura.
Você até pode dar seus primeiros passos poéticos mandando o sentido pro caralho.
Se quiser.
Quer ser poeta?
Então não se fie na opinião de ninguém.
Nem na minha.
Não espere reconhecimento.
Não fique aí parado feito tonto esperando um docinho.
Um afago.
Um elogio.
Quer ser poeta?
Então seja poeta.
Primeiro...
...aprenda a sentir.
Pra sentir...
...aprenda a sentir.
Pra sentir...
...aprenda a se livrar das besteiras que te enfiaram na cachola desde o dia que você nasceu.
Aprenda, acima de tudo, a sentir...
...a dor...
...que é sua...
...só sua...
...sua...
...sua...
Eu estou tentando ser poeta há 40 anos.
 E vejo hoje que tenho mil toneladas a aprender.
A cada manhã.
A cada tarde.
A cada lusco-fusco usco co o.
E desaprender.
Dsprender.
Aprnder.
Prndr.
ndr.
r.
Preciso aprender a aceitar o que sinto.
Preciso desaprender o que me entucharam na cabeça.
Tem lógica?
Se tiver, então tô falando merda.
Mas uma coisa tenho por certo nessa salada milenar:
Seguinte:
Três pontos
Não deixe que teorias e teóricos queiram te ensinar o que você sente ou deve sentir.
A poesia e a literatura em geral tem raríssimos criadores.
E palpiteiros a dar com o pau.
Não há poeta igual a outro.
Não há escritor igual a outro.
Cada verso é uma declaração de independência.
Uma declaração de guerra.
Um manifesto por um mundo carmim de sangue.