De escravos e livre-pensadores II

Dia desses eu e Ulisses falávamos do mal que as ideologias, políticas e outras, fazem ao mundo. Mencionamos en passant como as pessoas que se deixam conduzir ideologicamente acabam escravizadas dentro da espiral do pensamento único. Não sei como o Aurélio define a palavra, mas tenho para mim que “ideologia” é uma forma de pensamento que exclui todas as demais.
Simples, não é mesmo?
No outro blog que mantenho, Delenda PT!, escrevi pacas sobre o assunto. Criei aquele blog em 2006, auge da comoção que correu o País após as denúncias do mensalão e da polarização ideológica que se sucedeu. Os honestos já tínhamos sacado, desde as denúncias contra Waldomiro Diniz, então braço-direito de Zé Dirceu, que Lulla estava disposto a se manter eternamente no Planalto e para isso convertera seu partido, que outrora se dava ares de honrado e incorrupto, num eficiente bando de saqueadores do Erário. O plano era igualmente simples: roubar o Tesouro, comprar com o produto do saque deputados e senadores para obter sua fidelidade canina sem percalços ou riscos de defecções e se segurar no poder na maciota, sem conflitos nem armas (pois Lulla, além de safado, é um tremendo dum covarde e jamais botaria o pescoço a prêmio).
Em suma, um golpe de que a quadrilha sairia limpa e não emporcalharia as mãos de sangue. Bem ao estilo cordial preferido pelo brasileiro, que ferra todos que pode mas sempre com jovialidade e simpatia.
Desci uma borduna lascada na máfia travestida de partido político em várias dezenas de artigos, cravando uma pequena audiência de vinte a trinta leitores diários, que dobravam em dias em que fazia promoção em fóruns da Veja e de alguns jornais por aí. Até que um dia meu modesto leitorado começou a dar sinais de fenecimento. Logo saquei a razão: um longuíssimo texto em que metia bala no faroleiro profissional Diogo Mainardi.
Mainardi nunca me convenceu com as “análises” ligeiras e frívolas que publicava semanalmente nas páginas daquela revista que gosto de chamar de manual da classe média deslumbrada. Por anos foi o articulista mais lido da Veja e, como sói ocorrer com quem não dispõe dum caráter à prova de envilecimento, o sucesso logo lhe subiu àquele lugar que esse tipo de gente costuma deixar que suba. Mainardi cantava ridiculamente a queda de Lulla toda santa semana e quebrava tristemente a cara em seu papel de pitonisa e eu já parara de ler suas diatribes fazia tempo. Até que um dia fiquei sabendo meio sem querer que anos antes o falastrão havia montado um palavrório em que atacava fútil e mesquinhamente Carlos Drummond de Andrade. E qual fora o pecado imperdoável de Drummond ao olhos do vingador vejeano? Ter tido pendores socialistas na juventude.
Não me contive, obviamente. O cara que fosse ter seus ataques de estrelismo e prepotência em outra freguesia. E assim escrevi e postei o tal longo texto, carregado da mais fina mescla de furibundice e sarcasmo da blogosfera.
Foi esse o primeiro golpe na audiência do Delenda PT!
Mais ou menos um ano depois resolvi postar no blog um texto que escrevera ainda durante o último mandato de Fernando Henrique Cardoso chamado Um dia no Planalto. Se trata dum petardo literário satirizando o então presidente e sua proverbial, descomunal vaidade e a não lá muito forte propensão ao trabalho na administração do País.
Debandada geral. Dos vinte a trinta leitores diários sobraram dois ou três bravos guerreiros.
Como gosto de repetir pelo menos uma vez ao dia, meu papo é escrever. Não dei bola. E fui mais fundo. Resolvi botar pra fora a antiapatia cada vez mais aguda que sentia de Reinaldo Azevedo.
Fui leitor do blog do Azevedo por uns meses e umas duas ou três vezes o exaltei como a voz mais firme e dura contra a infâmia lulopetista. Até me dar conta de que Azevedo reescreve exatamente o mesmo texto todo santo dia sob formas outras. E por que faz isso? Porque tem uma plateia cativa, um grande público que o frequenta sabendo de antemão o que encontrará ali. Azevedo, tal como a imensa maioria dos que escrevem profissionalmente, não inventa nem surpreende. E nem quer. Os que o leem não buscam pensar e sim corroborar velhas opiniões que se cristalizaram ao longo do tempo. Azevedo, cabotino de marca maior, se autoproclama lógico a cada duas linhas que digita mas sua maior proeza está em não decepcionar seus leitores. É também lógica simplérrima. Mas seu maior assunto não é o lulopetismo, ao contrário do que poderia parecer, e sim ele mesmo. Azevedo é seu grande tema. Mais que jornalista, é um guru. Mais que guru, desempenha um papel messiânico que Lulla tem de sobejo e falta em virtualmente todos os oposicionistas do Pinguço Inflável. Os leitores de Azevedo não estão atrás de informação ou simples leitura; querem é um ser carismático que lhes satisfaça as aspirações de redenção. Eis a grande mentira de Azevedo. A cada parágrafo se autoclassifica de racional enquanto vai despejando toneladas de frases feitas e profecias e violentas injúrias antilulistas ao povaréu sedento de catarse e salvação. Azevedo é o líder político que os tucanos não sabem ser, o antilulla por excelência, o antípoda perfeito ao salvador da pátria. E tão demagógico quanto. E, pasme-se, populista tal e qual. Pois em seus textos Azevedo conversa consigo mesmo, se dividindo em dois personagens, um ingênuo que coloca perguntas constrangedoras de tão elementares, outro que responde paternal e lapidar, digno dum Oráculo de Delfos. Azevedo não se envergonha de se chamar pateticamente de Tio Rei, pois é o apodo “carinhoso” que grande parte de sua claque emprega.
De volta ao que interessa nesta postagem: a ideologia e como a ideologia mói o pensamento.
Ideologias são extensos cardápios que cada freguês escolhe ou por gosto ou por um outro critério qualquer que para mim sempre é arbitrário. Exatamente por que me escapa. A herdade, uma herança a preservar, a hereditariedade a seguir, tudo que já foi conquistado para nós em nosso nome e em nosso lugar bem poderia servir de começo de explicação. Mas o mundo concreto lá fora logo desmente razões dessa natureza. Ideologias parecem jazer no reino da simpatia. Por que o freguês opta por uma ou por outra, quer cedo, quer tarde na vida, é para mim um mistério. Conheço direitistas jumentos e direitistas brilhantes. E esquerdistas sagazes e esquerdistas asnáticos.
Quanto a mim, sou, pela enésima, eu mesmo.
Outro dia os jornais online alardeavam uma “declaração” de Rubem Fonseca. Parece que o autor de O cobrador fora à ABL receber um prêmio e estava explicando por que nunca se candidatou a uma cadeira naquele antro de fósseis. “Sou um homem idiossincrático e idiossincrasias não se explicam”, foi o que disse. Li a manchete mas não me interessei em ler o artigo. É patente, evidente, manifesto que Fonseca é idiossincrático e ele provavelmente estava apenas fazendo blague para jornalistas, pois nunca dá entrevistas.
Idiossincrasia é uma palavra cara para mim. Desde que me conheço tenho essa consciência vívida de não saber precisamente o que sou mas saber que definitivamente não quero ser como os outros. Muito menos ser o que os outros querem ou esperam que eu seja.
É um esforço contínuo e doloroso de autoexploração e autodescoberta. Atenção, não tentem isso em casa.
Automatismos me dão engulhos, mecanicismos me enfaram, pré-concepções me enjoam, ideologizados aversos ao pensamento vivo me dão sono.
Os pobres de espírito dividem o mundo em Marilena Chauí e Olavo de Carvalho, esquerda e direita, isso e aquilo. Quando você vai lá ver, é apenas um Coríntians X Palmeiras que nunca termina.
Eles querem é bater boca, xingar a mãe, se sentir importantes, se sentir “parte”.
Bom proveito.
Agora passo a palavra a quem entende do assunto.
Da supracitada discussão, Ulisses teve a ideia de escrever sobre Um inimigo do povo, de Ibsen. Falar de Ibsen no geral e dessa peça em particular significa tratar da figura do livre-pensador.




Ibsen e a figura do livre-pensador

Ulisses Razzante Vaccari
doutor em Filosofia pela USP, experto em Kant e Hölderlin e profe numa universidade federal do pedaço


Em Um Inimigo do Povo, o norueguês Henrik Ibsen decide encenar a trágica e indesejável figura do livre-pensador. Por meio dessa figura, realiza uma profunda reflexão sobre os temas da hipocrisia, da mentira e da democracia nas sociedades contemporâneas, procurando pensar o papel do governo, da imprensa e do povo nas esferas do poder.
Na peça, o livre-pensador é o personagem principal, o Dr. Stockmann, um médico responsável por cuidar da qualidade da água do balneário municipal de uma pacata cidade nórdica. Motivo de orgulho do prefeito e dos cidadãos, o balneário traz gente de todo o país em busca do efeito medicinal das suas águas, que inunda também os cofres da prefeitura. Um belo dia, entretanto, suspeitando da qualidade da água, o Dr. Stockmann resolve testá-la num laboratório. O resultado, como já se esperava, revela que a água vinha sendo envenenada pelos curtumes de algumas residências próximas ao balneário. Ao serem informados pelo doutor da notícia bombástica, os editores do jornal local A Voz do Povo põem-se imediatamente ao seu lado, reservando no periódico um espaço para Stockmann publicar um artigo trazendo à tona o fato, de interesse público. Mas o prefeito da cidade, que é irmão do Dr. Stockmann, logo se mostra avesso a essas ideias, alertando para o fato de que tal notícia espantaria os visitantes e levaria à falência tanto o balneário como a própria prefeitura e os negócios que dependiam dele. Insensível ao apelo do irmão de que seria preciso dizer a verdade, o prefeito alerta o Dr. Stockmann a não levar adiante a história, ameaçando-o de perder seu emprego e ter a opinião pública voltada contra ele.
Mas o Dr. Stockmann está obcecado com a verdade e pensa ser um dever moral revelá-la; está convencido de que o interesse pela verdade está acima dos interesses mesquinhos do prefeito e de uma minoria que pensa apenas no lucro. É um sonhador, um ingênuo ou um idealista, como diríamos hoje em dia. Nesse meio tempo, seu irmão, o prefeito, faz uma visita à redação do A Voz do Povo e explica aos seus editores as nefastas consequências que o artigo do Dr. Stockmann traria para a cidade e para o balneário. Aturdidos com a ideia da falência e da bancarrota geral, os editores do jornal viram a casaca num piscar d´olhos, e negam ao Dr. Stockmann o espaço antes prometido para seu artigo no periódico. A reviravolta soa tanto mais revoltante quando o leitor ou espectador da peça toma conhecimento de que eles não apenas se recusam a publicar o artigo do Dr. Stockmann, como, no seu lugar, publicam um artigo do prefeito, em que este calunia as intenções do irmão.
Apesar desse segundo golpe, proveniente do conluio da imprensa, que havia primeiramente se colocado ao seu lado de forma incondicional, com seu próprio irmão, o Dr. Stockmann está ainda mais coprometido com seus princípios. Pensa que os recentes fatos tornam ainda mais urgente a denúncia desse grupelho e de suas intenções enganosas, pois o povo precisa saber que a tão celebrada prosperidade da cidadela é falsa, fundada numa mentira! Nesse meio tempo, entretanto, o artigo do prefeito já havia sido publicado no jornal, difamando a figura do Dr. Stockmann ao espalhar a notícia de que sua intenção era destruir a sua própria cidade. Numa tentativa quase desesperada de conter as calúnias e ao mesmo tempo revelar a verdade, o doutor convoca uma assembleia popular, esperando esclarecer para as pessoas o “mal-entendido”. Mas, ao chegar à assembleia, Stockmann se depara com a presença do prefeito e dos editores do A Voz do Povo, que se põem a falar antes que o doutor pudesse se defender das calúnias que vinham sendo feitas a ele. Após acusado de louco e ser xingado e insultado pelos cidadãos agora tanto mais convencidos de sua insanidade, o Dr. Stockmann finalmente começa o seu discurso, espécie de clímax da peça, em que constrói sua teoria sobre a hipocrisia desse tão celebrado conceito de democracia.
Segundo o doutor (e aqui o leitor saboreia como nunca a verve crítica do próprio Ibsen), a democracia é uma farsa. Por trás desse conceito pomposo e promissor, a grande maioria é tanto mais facilmente manipulada pela meia-dúzia de poderosos que mandam e desmandam na cidade. E, assim sendo, se essa ideia de que a maioria escolhe o que é melhor para todos é uma farsa, uma tapeação, porque, no fundo, quem escolhe são sempre apenas os mesmos poderosos, que a manipulam, então essa maioria deve ser considerada inimiga da verdade e da liberdade: “O inimigo mais perigoso da verdade e da liberdade, entre nós, é a enorme e silenciosa maioria dos meus cidadãos. Esta massa amorfa”, afirma o doutor em seu tumultuado pronunciamento. As duras palavras, proferidas assim a seco, ofendem profundamente o público que, levando a assembleia ao caos geral, exige imediatamente a retratação do insano orador, ameaçando-o das formas mais inesperadas. Mas o Dr. Stockmann já não pensa mais nos males que essa sua atitude lhe causará; não está mais preocupado com sua família, nem com seu emprego, nem com sua fama nefasta. Pode-se dizer que encarnou a figura suicida do verdadeiro filósofo, do livre-pensador. Apenas a verdade interessa-lhe, a verdade nua e crua, essa mesma verdade que ninguém mais pode suportar. Recusa-se de pronto a se retratar pelo seu pronunciamento e assim quadruplica o já intolerante ódio dos presentes, desde o povo mais humilde até o prefeito e os editores do A Voz do Povo.
Ao fim e ao cabo, após um grande tumulto, a assembleia tem por bem declarar o Dr. Stockmann inimigo do povo. Humilhado e insultado, ele se recolhe à casa, que tem as vidraças apedrejadas. Despejado pelo seu senhorio, seus filhos passam a ser insultados na escola. O apego irrefletido pela verdade e pelos princípios, a atitude quase kantiana com a moralidade lhe sai extremamente cara. As pessoas endeusam a verdade, esse conceito abstrato e romântico, mas não a suportam. Esse mundo insuportável e insustentável da verdade, entretanto, é a casa do livre-pensador, o lugar ao qual ele pertence e o único em que se sente realmente bem a ponto de arriscar sua vida material para apoiá-lo, difundi-lo e sustentá-lo. E é essa figura que o Dr. Stockmann de Ibsen encarna, em sua forma mais crua e radical. Como todo livre-pensador, Stockmann não é ligado a nenhum partido, ao contrário do prefeito, cuja função na administração municipal consiste em defender o interesse dos banqueiros e investidores (no Brasil atual, esses investidores são os empreiteiros, que enriquecem com propinas enquanto as cidades transbordam de concreto). Mas a liberdade de Stockmann contrasta também com a promiscuidade da imprensa, pintada por Ibsen como espécie de maria-vai-com-as-outras, a tender para o lado que se mostrar mais favorável, mais rentável. E exatamente por isso, por não pertencer a nenhum partido, a nenhum grupo, o livre-pensador, detentor da verdade que ninguém quer ouvir, se torna o ponto mais fraco da corda, aquele que necessariamente sucumbe quando um embate desse quilate vem à tona. Ao ser oficialmente declarado inimigo do povo pela assembleia, Stockmann torna-se o bode expiatório, a figura ideal para a população como um todo despejar o ódio inconsciente acumulado por séculos e séculos de dominação e ultraje dos poderosos sobre ela.
Ao longo da história, a humanidade conheceu muitos livres-pensadores, artistas, cientistas e filósofos que, incapazes de apenas reproduzir uma ideologia, se comprometeram com a divulgação da verdade e pagaram um preço caro por essa decisão, que, no fundo, é uma vocação, um destino do qual não puderam fugir. Não podemos deixar de pensar aqui em Sócrates, ele próprio declarado inimigo público, segundo as autoridades de Atenas, por corromper a juventude. Podemos pensar em Galileu, condenado pela Inquisição a se retratar pela descoberta das manchas solares, contrariando claramente os dogmas da Igreja. Ou podemos pensar em Espinosa, excomungado por ambas as comunidades religiosas, a cristã e a judaica, esta última tendo sido suficientemente clara na sua determinação: “Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa […] Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai, maldito seja quando regressa […] Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém leia algo escrito ou transcrito por ele” (texto da sinagoga de Amsterdam de 1656).
Espinosa formulou um pensamento tão nocivo às duas ideologias dominantes, das quais fazia parte – a cristã e a judaica –, que teve de ser expulso de ambas. Se soar por demais peremptório e dogmático afirmar que foi excomungado por possuir a verdade, para além da questão da verdade, a ojeriza causada por pensadores desse calibre se refere antes ao fato de eles não comungarem de linhas de pensamentos determinadas, de nenhum padrão claro ou linha pré-definida. O que causa asco em todos esses casos – e aqui podemos pensar também na empreitada de Nietzsche contra o cristianismo e o proselitismo – é a liberdade de que gozam. É a rara liberdade com a qual falam o que pensam, sem se preocupar em agradar a este ou àquele lado da disputa, que constrange o que não é livre, que o ameaça em sua confortável posição, protegido que é por seus asseclas, por seus pares, que invariavelmente “pensam” como ele.
No fundo, aquele que defende uma ideologia – seja ela de esquerda ou de direita, cristã ou judaica – não pensa no sentido mais radical da palavra. O ideólogo apenas reproduz ou imita uma doutrina pronta, um leque de ideias que está sempre lá à sua disposição, espécie de manual ou repositório intelectual ao qual ele pode recorrer sempre que se vê em perigo. Com isso, ele se exime da responsabilidade de pensar e do que já foi pensado, protegendo-se das possíveis críticas na casca da ideologia. Geralmente, os ideólogos o fazem porque têm algum interesse em jogo ou porque têm algo a perder, como o prefeito ou os jornalistas da peça de Ibsen, colocando seus cargos e seu bem-estar pessoal acima do bem público, acima do interesse da maioria. Como diz o Dr. Stockmann em seu discurso, é por isso que a tão celebrada democracia é uma farsa. Em última análise, trata-se apenas de um conceito utilizado e difundido por uma meia dúzia de poderosos para manipular a maioria, que vota em quem eles determinam previamente, recebendo o suporte (e isso é o mais grave) da classe dos ideólogos, constituída por pseudopensadores e pseudoartistas em geral, pseudoprofessores e pseudojornalistas, todos interessados em tirar uma casquinha do poder, em participar desse oba-oba público-privado, localizado nas altas-esferas da sociedade, ao mesmo tempo em que desempenham papeis previamente esboçados na grande farsa, na tragicomédia da democracia.

O perdedor de estrelas



Literalidades

Perder uma estrela tem alguma importância? De todas que perdi, conta que não saberia fazer, nem nunca que me ocorreu fazer, que interessa?
Talvez viver minha vida seja perder uma estrela por dia. Ocasionalmente, mais. Duas, três, não sei ao certo. Será possível? Perder até três estrelas num só dia? Teria eu tal capacidade? Poderia qualquer ser humano suportar? É duro crer nessa possibilidade.
Sem falar da noite. Tenho a impressão de ser um perdedor de estrelas noturno. Custa-me irrealizável sacrifício confessar, mas foi por isso que me tornei notívago. Bons tempos aqueles em que me dava o singelo luxo de me embeber de Bilac. Lembro que era assim mesmo — ia absorvendo qual uma esponja. E outros, naturalmente: Pessoa, Mário de Andrade, Bandeira, até, puxa, Drummond. Li Bilac algum dia? Custa crer nessa realidade.
Creia-me — não é fácil ser um perdedor de estrelas noturno. Embora o tenha sido desde que nasci — terei perdido uma logo no meu parto? —, não me acostumo. Seria o mesmo que rir duma piada tendo uma faca cravada no fígado.
Sou um perdedor de estrelas experiente. Vivo em estado delirante, e em tal estado me toma a convicção de que vim ao mundo engalanado delas. Sim. Nasci um generalzinho recoberto de brilhos fátuos. Quem, me vendo hoje este arremedo de homem que perde estrelas a que cheguei, diria? Creia-me — não é fácil nutrir esta vocação de perder estrelas. É o que pode haver de mais antinatural. Tão antinatural quanto andar de cabeça pra baixo se apoiando nas mãos. E, como se ainda fosse pouco, para trás.
Com a experiência em perder estrelas, descobri que quando perco uma, a perco ao acordar de manhãzinha. Por isso é tão duro dormir à noite. A ansiedade da perda matutina não me dá sossego. Hoje sei o que passa na cabeça dum condenado à morte em sua última noite antes da execução.
Todas as minhas estrelas que perdi, as perdi de repente. Olhava meu céu, não estava mais lá. A princípio, não me dava conta. Ia perdendo, perdendo como perco hoje e sempre perderei, até que descobri. No meu céu, essa reluz como a Grande Estrela da Descoberta. Essa, não a perco. A cada minuto olho meu céu na esperança de não vê-la, mas lá está ela, luz totalitária, reluzindo mais que todas.
Todas as minhas estrelas as perco de repente. Mas olho meu céu forrado de nuvens escuras, a tempestade prestes a arrebentar, e vejo que você vai se apagando aos poucos.

Memórias do cárcere químico XVI

Procura-se
Novo corpo
Para espírito
Imperecível


Vem, baby
Dá uma martelada
Em mim




O segurador de tetas



Literalidades

O telefone toca.
— Alô.
— Alô. É sobre o anúncio.
— Pois não. Pode falar.
— É o senhor mesmo o Segurador?
— Em pessoa.
— Quanto tá saindo uma seguração?
— Depende. Oferecemos vários pacotes. O número é padrão ou...?
— Na verdade, não é pra mim.
— A, sei. Fazendo cobertura pr'uma amiga...
— Que nada. É pra minha filha.
— A, tadinha da fofa. Que idade?
— Treze aninhos.
— Número?
— Trinta e oito.
— Um, vejamos... Treze aninhos, trinta e oito... um... posso deixar por duzentos.
— Tudo isso? Que absurdo!
— E olha que estamos em promoção. Normal seria trezentos e vinte.
— Onde vamos parar com essa carestia, meu-deus? Tem como fazer um abatimento?
— Pra tudo há um jeito, amiga freguesa. Um fator que posso levar em conta é o potencial. Sabe como é, essa idade, esse tamanho. Também precisamos avaliar os antecedentes, claro. Como é árvore genealógica da diaba?
— Bom, varia, o senhor sabe.
— Sei, freguesinha. Qual foi o valor máximo?
— Cinquenta e seis.
— Não!
— Sim.
— Pois é como eu dizia. Tendo potencial, podemos melhorar o preço. Mas só posso dizer na hora.
— E se eu também participar da sessão?
— Era exatamente o que eu ia perguntar. Qual é o seu número?
— Quarenta e seis.
— Idade?
— Trinta e nove.
— Tá zerado.
— Como assim, zerado?
— Na sua faixa etária e faixa dimensional, geralmente pago duzentos. Entendeu?
— Quer dizer que, quanto mais velha e maior número, mais barato?
— Bom, nem sempre funciona de forma tão mecânica. Tem umas variáveis. Por exemplo, se trouxer sua mãe...
— Infelizmente mamãe morreu há alguns anos.
— Lamento. Qual era o tamanho da falecida, só por curiosidade.
— Quarenta e seis também, acho.
— Sangue forte na família, hein?
— Mas tenho uma amiga japonesa.
— Sei não. As orientais geralmente não têm nada. Quando têm, são tititicas.
— Essa minha amiga, não. Usa quarenta e quatro.
— Opa! Aí é outro papo. Japa-quarenta-e-quatro, espécime raro.
— Nesse caso, quanto ficaria?
— Cinquentão.
— Ué, só isso?
— Bom, dependendo do exame visual, posso melhorar a oferta. Mas não prometo nada.
— Tenho também uma vizinha interessada.
— A coisa anda farta aí do teu lado, hein, neném? Qual o número?
— Cinquenta e dois.
— Aí já é demais. Você já pegou um cinquenta-e-dois nas mãos?
— Pegar, não. Mas já vi, claro.
— Au naturel?
— Au naturel, não. Só vestidos.
— Então não viu nada. A roupa engana muito. Um cinquenta-e-dois-au-naturel é coisa de profissional. Amarcord pra cima. Cansa que é uma tristeza.
— Em todo caso, quanto ficaria?
— Uns quinze mirréis. Já descontado o peso.
— Bom, e o pacote todo?
— Um, deixa eu calcular. Só um minuto... trinta-e-oito, treze anos, máximo cinquenta-e-seis, mãezinha caridosa... avó empacotou... quarenta... vizinha raçuda... um... Bem, no plano básico, cento e trinta. Se trouxer outro quarenta-e-seis, fecho por vinte. E ainda devolvo cenzão. Conhece algum outro quarenta-e-seis?
— Tenho uma prima do interior, que não vejo há uns anos.
— Um, prima-do-interior-quarenta-e-seis é caso muito especial. Especialérrimo.
— Aumenta o preço?
— Pelo contrário. Dou desconto. Belo dum desconto. Não vê há quantos anos exatamente?
— Uns três. Ou cinco. Sei lá.
— O cabelinho. Como era o cabelinho?
— Naquela época era curtinho. Bem curtinho.
— Castanhozinho?
— Isso. Castanhozinho.
— Sei não. Acho que aí já é demais. Ai que perigo!
— E a seguração, como é? Coletiva? Individual?
— Individual obviamente não, framboesinha. Damos os descontos referidos exatamente pela sessão em grupo.
— Mas eu e minha filha assim, juntas... Não vai pegar mal?
— Muito pelo contrário. Fica uma belezura.
— E sutiã? Faz diferença usar sutiã?
— Jamais diga essa palavra assim, minha flor. É “sutiãzinho”. Sempre no diminutivo. A não ser que você fale em francês. Assim: “soutien”. Mas duvido que consiga. Por isso, o referido deve ser... Pensando melhor, diga “sussuzinho”. Nosso inspetor fica desapontado... pior, decepcionado quando ouve essa palavra que você acabou de dizer. Geralmente aplica uma multa. Nem vou dizer qual, pra não te assustar.
— E a cor do suti... digo, do sussuzinho? Tem alguma recomendação?
— Naturalmente, minha linda. Afinal, somos profissionais, não somos? As cores devem ser as tradicionais: brancão, pretejudo, transparentinho-ui! azulão-marinheirinho-ai! Só não me venha com invencionices. Amarelo, roxo, verde, essas coisas extravagantes. Uma copa de cada cor então, nem pensar. Ouviu? Nem pensar!
— Outra perguntinha. Não gosto de balangação. Pode ser sem?
— Balangação não é com meu departamento. Vou passar para o responsável pelos Eventos Sinergéticos. Queira aguardar um minuto na linha, sim?
— Pois não.
— Alô. Eventos Sinergéticos. Geraldo falando. Às suas ordens.
— Ué, seu Geraldo. O senhor fala igualzinho o outro rapaz que me atendeu.
— Falo igualzinho porque sou o mesmo, chuchu. Não estamos em condições de aumentar o quadro de pessoal. Também, com essas práticas comerciais que adotamos, não é pra menos, hein? Hehehe. Cá entre nós, o que salva esta empresa é que sou um sujeito eclético. Sei operar em praticamente todas as funções. Exerço até aquele cargo você-sabe-qual.
— Não sei não, seu Geraldo. A que cargo o senhor se refere?
— Àquele.
— Qual, homem?
— Experimentador, ora! Experimentador Geral.
— Bom, seu Geraldo. Eu estava perguntando sobre balangação. Queria...
— Só um minutinho. Vou passar para o Experimentador Geral. Pode aguardar na linha?
— Posso.
— Alô. Experimentador Geral falando.
— Seu Experimentador, é o seguinte. Faz meia-hora que estou tentando obter uma informação simples e objetiva, mas seus atendentes só me enrolam.
— Peraí, minha ninfa. Te enrolam como? Tem de ser mais específica. Não pode ir acusando assim a torto e direito.
— Bom, como poderia explicar...?
— Deixa eu te ajudar. Afinal, é pra isso que estamos aqui, não é mesmo? Pois bem. É pros dois lados que eles fazem?
— Um... Sim. Acho que sim.
— E pra cima?
— Um-um.
— Pra baixo?
— Também.
— Puxam pelo biquinho?
— Na verdade, só às vezes.
— E apalpação? Tem apalpação?
— Olha, já que perguntou, tem.
— Um. O caso é sério. Muito sério.
— O que é que eu faço, seu Experimentador?
— São os dois biquinhos ou só unzinho?
— Os dois.
— Duma vez?
— Às vezes, sim. Outras não. Ora é um, depois o outro.
— Ai, que falta de uniformidade, minha cruelzinha! Alternada ou sincronicamente?
— Dos dois jeitos.
— Um. A coisa tá braba. Muito braba.
— Ai, seu Experimentador! Diz logo o que é que eu faço?
— Vou ter de pedir a intervenção do Superintendente. Você pode esperar um pouquinho?
— Posso.
— Alô. Superintendente a seu dispor.
— Seu Superintendente, já não era sem tempo. Afinal, pode ser sem balangação ou não?
— Só sobre meu cadáver! Digo, de jeito nenhum. Somos uma firma séria. Se você quer perversão, procure outro. O jornal está cheio de anúncios. Aliás, chega de negociação. Vou passar para o Segurador. A senhora pode aguardar na linha?
— Já esperei até agora...
— Alô. Segurador falando. Ei, benzinho, você precisa tomar mais cuidado. O Experimentador ficou pê da vida com esse teu papo. Olha, da próxima vez vai ser difícil conter o homem. Fique sabendo.
— Desculpe, seu Segurador. Hehehe, é que sempre fui muito ingênua.
— A, ingenuazinha, é? Então, mais um desconto de trinta.
— Bom, seu Segurador. Agora, aquela pergunta...
— Qual pergunta, minha santa?
— Aquela, Segurador.
— Pode perguntar, que a fortaleza aqui resiste a qualquer furacão, meu anjo.
— É sobre a chupação...
— Que é que tem ela?
— Pode ser sem?
— Claro, delírio. Topamos qualquer negócio.
— Nadinha?
— Nem chupação, nem chupaçãozinha, nem chupadinha, nem nada.
— É que é a primeira vez...
— A, nesse caso, não cobramos coisa alguma. E damos um presentinho. Um mimozinho, sabe como é. Independente da configuração. Independente da inspeção. Independente da balangação. Independente da chupação. Se fechar o negócio agora, então, ai, meu-deus, desembolso quinhentão! 
— E o senhor facilita?
— Claro, taradinha. Facilitamos tudo. Tudinho.
— E da nossa parte? Que é que nós freguesas fazemos durante a sessão?
— Nada, abençoadinha. Absolutamente nada.
— O senhor está querendo dizer que ficamos lá paradinhas sem mexer um...
— ...musculozinho. É exatamente isso que estou querendo dizer.
— Não precisamos segurar alguma coisa?
— Em geral, não. Salvo se assinarem um contrato se responsabilizando por um eventual AVC.
— AVC?
— Acidente Vascular Cerebral.
— E silicone. É permitido?
— Ai!
— Alô! Alô! Segurador? O senhor está aí? Alô!
— Minha nega, faça isso não. Outra dessa, você empacota este pobre e inocente operador nato de mamas. A última que chegou aqui com essa... essa... coisa! que você mencionou exterminou metade da equipe. Tenha dó dos outros, desalmada!
— Só mais uma informação, seu Segurador.
— Manda.
— Vocês aceitam meio caidinhos?
— Claro, deliciazinha. Até um limite de... digamos... oitenta por cento de declive, tudo bem. Tem um pessoal aqui que até prefere os desse tipo. Mas impomos uma condição.
— Qual?
— A freguesa se obriga a permitir umas mordidinhas. Nada muito drástico, claro. Com a pontinha do dente. Só pra compensar o desgaste.
— E no geral, seu Segurador? A beleza é levada em conta na definição dos custos?
— Você diz beleza da dona ou...
— Da dona. No caso, eu.
— Por que, meu pesseguinho maduro? Tu tem cara de canhão, por acaso?
— Canhão, também não. Mas não sou exatamente uma beldade.
— A, minha distante e apetitosa interlocutora, para uma empresa de profissionais como a nossa, a fuça da vítima não têm a mínima importância. Pode ser trabuco, dragão, ornitorrinco, lobisomen, o que for. Ninguém vai ver mesmo.
— Ninguém vai ver? Deixam a gente no escuro?
— Nada disso, canhãozinho. Você ficam todas encapuçadinhas. Que é pra não atrapalhar o processo.
— Só tem um problema, seu Segurador.
— Chuta, minha rainha artilheira. Chuta, que o goleirão aqui segura.
— É que... que... Bom, o senhor deve saber... Eles não são iguais.
— Eles?
— É. Eles.
— Você disse “eles”, carrasca?
— Disse, sim. Não podia...?
— É claro que não são iguais, jumentinha. Perfeito só deus.
— Será que eu posso saber só mais uma coisinha, seu Segurador?
— Pode, destemperada. Que é que é?
— Durante a sessão, o senhor fala alguma coisa ou fica calado?
— Fico morto, minha bestinha assassina. Morto de dar dó.