Depois I

A professora, com seu jeitão de professora, lá de sua mesa aponta o indicadorzão pro meu lado e lasca:
Você!
(Você aí com essa carinha sonhadora! esses olhinhos castanhos tristes, esse ar preguiçoso de quem não nasceu pra dar duro, nem pra dar mole... Sim, você! que desistiu antes de travar as lutas que te cabiam. E travou cada uma das que não existiram. Você, sim! que parece estar aqui e mil outros lugares ao mesmo tempo e em lugar algum também. Você aí! sujeitinho monossilábico, mais que calado, taciturno, mais que arredio, clandestino, você! que não se importa quando teus suspiros de desalento chamam a atenção dos que estão em volta, você, que passa a aula debruçado nessa tua estranhíssima, nessa tua particularíssima janela voltada para dentro, alheio à paisagem, indiferente aos murmúrios ameaçadores dos anjos, aos cochichos sedutores das feras. Você! festivo carcereiro de si mesmo, debochando dos que aspiram à liberdade do mundo, títere do ventríloquo do ventríloquo do títere. Sim, você! Que pergunta e tampa os ouvidos para não escutar a resposta, que adiciona para subtrair, que se põe de pé para repousar, que não aprendeu a repudiar o mal e se proteger da dor, você! que vive para esperar a morte e vai morrer sem ter querido viver, que engole a metafísica pelo encanto dum rosto, por mais vulgar, você, diga! quanto é oito vezes quinze?)

Dor amarelo-clara

Jazias em meus braços
Sonhando que
Jazias em meus braços
Prisioneira a me
Render com teu silêncio
Liberto prisioneiro e
Tinha perfume cheiro
Algum, e teus olhos,
A noite e tua voz a
Muda doçura do rio
Seco e estudava te
Abraçar antes que as

Águas me engolissem

De quem nunca se pôs de joelhos

S(oninha), você está longe de ser a mais bonita das mulheres do mundo mas, se anjos existissem e se anjos tivessem rosto, teriam o teu.

Dá pra sentir o cheiro daí?

e Vidal de repente ficou tête à tête com Mailer e quando deu por si jazia estatelado no meio do salão. Se ergueu meio constrangido, meio galhofeiro, e encasquetou: "mais uma vez faltaram as palavras ao Norman..."

(As reticências são por minha conta...)

Não é tentativa frustrada de emular Eugénio de Andrade

Os punhos da camisa desbotados
Enquanto desço a avenida no encalço do garoto ruivo
(Andrade não fazia versos compridos)
(Não era eu o moleque que gostava de seguir estranhos na rua pela simples gana de se perder irrecuperavelmente)
Podia passar no céu um meteoro
Me dar a chance de recomeçar a vida
Pelo menos a partir dos catorze, quando morri para renascer morto
O ruivo vira a esquina alheio à minha perseguição
E dobra um dos punhos desbotados e meu pêndulo reencarna James Dickey
Um golpe de vento gelado
Vai me carregando para o passado
Enfio as mãos nos bolsos, luto, resisto valente
Nada de aprisionar mais esta manhã numa moldura da infância
(Que reverberações são essas? O tempo não dura mais que um segundo)
Fui premiado com o menos romântico dos corações do mundo
A arritmia que me salva dos batalhões e sua marcha unida
Meu dia não fulgura nem embolora
Não tenho país
Não tenho língua
Não sou daqui

A empregada ou: mais um momento Verissimo

Juliana não aguenta mais.
A empregada nunca foi lá muito eficiente mas nos últimos tempos a coisa vem escapando totalmente ao controle. Faz semanas que Juliana, deparando uma, duas, três, quatro vezes ao dia com as trapalhadas de Iracema, rosna a si mesma: “Hoje mando essa desleixada passear!”
No começo rosnava com raiva mas baixinho, cuidando para que a empregada não escutasse. Nos últimos dias, porém, não tem dado lá muita consideração a como a moça possa reagir.
Até que, como não poderia deixar de ser, chega o dia fatídico – Iracema deixa pingar a gota d'água no caldo e este, como deve estar óbvio, entorna de vez.
Juliana tira uma blusa de... do guarda-roupa e lá está: uma mancha do ferro de passar bem no meio das costas. Tinha custado uma nota preta na loja da Jussara, sua ex-colega da faculdade de psicologia.
(Pensando no assunto agora, que coincidência nenhuma da turma ter seguido a carreira. Juliana morde o lábio, ressabiada. Bem que lhe tinham recomendado que cursasse nutrição...)
— Iraceeeeeema! — esgoela, sem pensar duas vezes.
Como a empregada demora a responder, sai pelo apartamento à procura dela. Depois de procurar na cozinha e na área de serviço, a encontra em seu quarto, escutando sertanojo universitário.
Avança com o braço segurando a blusa queimada. Tem gana de esfregar na cara da folgada.
Iracema faz que não é com ela.
Juliana pensa notar um ar de deboche na indiferença da outra.
Perde definitivamente a paciência.
— Pega sua trouxa e dá o fora daqui! Agora mesmo!
Iracema se levanta da cama e bota as duas mãos na cintura em atitude ostensivamente desafiadora.
— Vai me mandar embora, é? E quem vai dar o cuzinho pro seu Jorge?
Juliana fica pasma, muda, verde, bege, estatela os olhos, crava as unhas nas palmas das mãos.
— Cccco... como é que é?
— O seu Jorge vive dizendo que a patroa não gosta de dar o rabicó para ele. Até me paga dobrado pra usar o meu.
Juliana sente a cabeça rodopiar. Está um tantinho assim dum desmaio. Escuta mas não quer ouvir.
— Toda madrugada ele entra no quarto pra me enrabar. Aliás, é tão pequitito. Pra mim quase não incomoda. Não sei por que a senhora faz conta daquele piauzinho.