Extremistas pusilânimes

Se o já condenado cidadão Luís Inácio Lula da Silva não for encarcerado no futuro próximo, de acordo com a legislação penal em vigor e nos termos das normas jurídicas e sociais que pretensamente regem isto que chamamos de democracia brasileira; se o já condenado cidadão Luís Inácio Lula da Silva não for punido pela multiplicidade de crimes que cometeu enquanto ocupava o cargo máximo da Federação de presidente da República do Brasil e também pelo período em que sua eleita e mancomunada Dilma Roussef, igualmente desonesta, inescrupulosa, inconsequente, irresponsável, exerceu igual mandato; se o já condenado cidadão Luís Inácio Lula da Silva, por ter exercido na hierarquia republicana a função que mais exige de seu ocupante demonstrações inequívocas de honradez, integridade, decoro, decência, moralidade, probidade não for tratado com o mesmo rigor da lei a que estão sujeitos todos os cidadãos brasileiros; se o já condenado cidadão Luís Inácio Lula da Silva não for imediatamente impedido de debochar dos magistrados e agentes da aplicação da lei, de, nos discursos descaradamente petulantes e levianos que vem proferindo de norte a sul, tripudiar do Sistema Jurídico, de escarnecer dos cidadãos honestos que buscam vê-lo pagar exemplarmente pelos crimes de lesa-pátria, pelas intoleráveis,  insolentes, desabusadas agressões à Constituição Federal...

...então é chegada a hora de fazermos avançar a ruptura constitucional iniciada e perpetrada pelo já condenado cidadão Luís Inácio Lula da Silva e aceita pusilânime e passivamente pelos débeis integrantes de cada instituição falida deste País; e é chegada a hora de tomar as rédeas de tal ruptura constitucional, desviá-la de seu caminho ambíguo e dissimulado que tem trilhado até aqui e finalmente direcioná-la rumo ao enfrentamento peremptório, cabal, definitivo; é, repita-se, chegada a hora da radicalização corajosa por parte dos homens e mulheres do Brasil que não  mais suportam atuar como espectadores inertes e inermes do simulacro teatral em que usurpadores dos Poderes desempenham papéis de vilões a saquear o País com suas garras imundas de corrupção e escárnio.

É triste ter de dizer que chegou a hora do enfrentamento. E o primeiro passo será, na falta de outros líderes que esperamos até hoje e infelizmente não ergueram suas vozes, votar em Jair Bolsonaro.

O usuário



Literalidades

Seis e meia da manhã. O usuário acorda. Levanta da cama. 
Põe os chinelos.
Seis e quarenta. O usuário esquenta o leite. Corta o pão, passa manteiga, come, toma o leite. Limpa a boca com um guardanapo de papel. Arrota.
Se trabalha fora, o usuário sai. Senão, o usuário liga o rádio.
Se tem carro, o usuário que trabalha fora vai para a garagem. Abre a porta da garagem, entra no carro, dá partida, tira o carro, desce do carro, fecha a porta da garagem, volta para o carro, entra, engata a primeira e arranca.
Se não trabalha fora, o usuário que não trabalha fora vai até a cristaleira da cozinha, apanha o rádio, liga e procura uma estação. Sintoniza. Faz careta. Sintoniza outra. Faz mais uma careta. Escuta uma notícia. Desliga o rádio. Repõe o rádio na prateleira. Dá meia-volta e vai para a sala. Senta na poltrona. Pega o controle remoto. Liga a tevê. Aperta um botão, mudando de canal para cima. Chega no topo. Aperta outro, mudando de canal para baixo. Vê uma notícia. Desliga.
O usuário que trabalha fora pára no farol. Um pedinte se aproxima. O usuário que trabalha fora levanta o vidro. Dispensa o pedinte com um abano da mão. O farol abre, o usuário que trabalha fora engata a primeira e arranca. Um outro carro corta seu caminho. O usuário que trabalha fora breca. Buzina. Xinga. Buzina. Esbraveja. Buzina de novo. Outra vez. Mais uma. Pára no farol. Engata, desengata. Dispensa. Levanta. Abaixa. Buzina. Xinga. Breca. Arranca. Liga o rádio. Procura uma estação. Escuta alguns instantes. Muda de estação. Escuta alguns instantes. Desliga o rádio. Resmunga.
O usuário que não trabalha fora levanta da poltrona. Vai até a janela. Pousa os braços no parapeito. Olha em algumas direções. Fita alguém passando na rua. Volta o olhar para uma pomba na calha. A pomba arrulha. Cata os próprios piolhos. Percebe a presença do usuário que não trabalha fora. Se assusta. Voa. O usuário que não trabalha fora olha para o céu. Abre um bocejo, fecha um punho, tampa a boca com o punho fechado. O usuário que não trabalha fora desiste de olhar pela janela. Dá meia volta. Vai até a estante da sala. Apanha um livro a esmo. Olha a capa. Lê o título. Reflete alguns segundos. Abre o livro a esmo. Lê um parágrafo. Reflete. Lê outro. Reflete. Lê alguns parágrafos. Boceja de novo. Tampa a boca com o punho de novo. Fecha o livro.
O usuário que trabalha fora dá seta para a direita. Põe o braço fora da janela e abana a mão, indicando que está reduzindo a velocidade. Sobe na calçada. Um pedestre passa. O usuário que trabalha fora buzina. O pedestre xinga. O usuário que trabalha fora xinga de volta. O pedestre sacode o braço. Xinga. O usuário que trabalha fora resmunga. Acelera. Entra no estacionamento. Pára na guarita. Põe ponto-morto. O atendente do estacionamento mumunha bom-dia. O usuário que trabalha fora mumunha de volta. O atendente digita algumas teclas. A máquina registradora emite um silvo, depois um apito, depois relincha, depois zurra. Produz um tíquete. O atendente arranca o tíquete da máquina e entrega ao usuário que trabalha fora. O usuário que trabalha fora engata a primeira. Acelera. Arranca. Breca. Encaixa o carro numa vaga. Põe ponto-morto. Puxa o freio de mão. Desliga a ignição. Tira a chave. Sai do carro. Abaixa-se em direção ao banco traseiro e apanha uma valise. Bate a porta do carro. Tranca. Ruma para os elevadores. Aperta um dos botões dos elevadores. Aguarda.
O usuário que não trabalha fora volta para o quarto. Tira a blusa do pijama. Tira as calças do pijama. Apanha umas calças que estão jogadas sobre uma cadeira. Veste as calças. Abre a porta do guarda-roupas. Apanha uma camisa. Veste. Calça meias. Depois, sapatos. Sai do quarto. Dirige-se à porta dos fundos. Abre a porta. Sai. Fecha a porta. Ruma para a edícula. Abre a porta da edícula. Entra. Fecha a porta. Sobe as escadas. Entra numa sala. Senta-se a uma mesa. Liga o computador. Aguarda. Empunha o mouse. Clica uma vez. Clica uma segunda vez. Clica uma terceira vez. O processador de textos é aberto. O usuário que não trabalha fora apruma as costas, ajeita-se na cadeira. Digita.
O usuário que trabalha fora entra no elevador. Diz bom-dia. Sai do elevador. Ruma para sua sala. Abre a porta. Entra. Fecha a porta. Tira o paletó. Pendura o paletó num gancho na parede. Senta-se à sua mesa. Liga o computador. Aguarda. Empunha o mouse. Clica uma vez. Clica uma segunda vez. Clica uma terceira vez. O processador de textos é aberto. O usuário que não trabalha fora apruma as costas, ajeita-se na cadeira. E digita:

Prezado cliente, nossa empresa está colocando em oferta vários produtos. Lurdes, nunca pensei que você me deixaria. Esta é a sua oportunidade de ganhar. Lembra quando você foi receber o título de doutora honoris causa, lembra? Nosso sistema de conferência de estoques é único no mercado. Sei lá, me acostumei a pensar que sermos um do outro era a coisa mais natural que podia existir. A instalação do sistema é simples, bastando acessar o painel de controle dos programas ou a opção do grupo de programa de aplicação. Lurdes, depois de tudo que passamos juntos, essa “lista dos meus defeitos” que você me apresentou foi um baque para mim. Se o sistema que você está usando atualmente não resolve todos seus problemas, use o recurso de adição/remoção para ver quais são as aplicações suportadas Olha, Lurdes, não me resta outra alternativa. Você pode também ver uma lista dos produtos que fazem parte da nossa rede. Essa lista foi o fim da picada. No Windows, tecle em “Iniciar Cópias” para copiar o número desejado de listas. Quando te vi a primeira vez, na janela da tua casa... Abra a janela “Conexões atuais” e clique no respectivo link. No dia seguinte te liguei. Lembra? Os recursos de telefonia dos nossos aplicativos são suportados por todas as redes. Liguei e fiquei esperando, sem falar. Mas você viu que era eu. Todas as aplicações suportadas instaladas podem ser visualizadas pelo usuário. Fiquei alguns minutos sem falar, só ouvindo tua respiração excitada, depois sôfrega, cada vez mais sôfrega. Você pode ter a certeza de que nossas soluções serão o fim das suas dores de cabeça. Agora vem me acusar de egoísta depois de tudo que fiz por você? Ora, faça um exame de consciência e diga se estou errado! Oferecemos um projeto abrangente e criterioso, que inclui um detalhado exame das suas perdas. Lurdes, no fundo eu sabia que ainda teria de passar por esse processo. O processo pode ser ligeiramente diferente dependendo da sua versão. Afinal, por que essa repentina aversão a mim? Envie um e-mail ainda hoje! 

O usuário que não trabalha fora clica o botão “Enviar”. Aguarda. Desliga o computador. Levanta da cadeira. Sai da sala. Sai da edícula. Vai para a casa. Abre a porta da casa. Entra. Fecha a porta. Vai para a sala. Apanha o controle remoto. Deixa-se cair no sofá. Liga a tevê. Assiste.
O usuário que trabalha fora clica o botão “Enviar”. Aguarda. Desliga o computador. Levanta da cadeira. Sai da sala. Vai para os elevadores. Aperta o botão. Entra no elevador. Desce. Sai do elevador. Vai para o estacionamento. Entra no carro. Dá partida. Engata. Manobra. Devolve o tíquete. Acelera. Ganha a rua. Vai para casa. Estaciona na garagem. Sai do carro. fecha a porta. Fecha a garagem. Sobe a escada. Abre a porta da casa. Entra. Fecha a porta. Vai para a sala. Apanha o controle remoto. Deixa-se cair no sofá. Liga a tevê. Assiste.



Ordipogreço



Literalidades


Naquele distante, exótico e irrespirável país havia um Serviço Oficial implantado, patrocinado, fiscalizado e controlado por diversos organismos governamentais.
O lema do diretor Executivo do citado serviço OFICIAL era: se você puder fazer seu trabalho novamente, ótimo. Se puder fazê-lo o mais tarde possível, otíssimo! Se afinal não fize-lo mas conseguir fingir que o fez e o fez bem feito, então nem se fala!
O referido SERVIÇO oficial, porém, vivia sobre (sic) um di-lema, que o lema do diretor executivo não contemplava nem na introdução nem na confusão e assim os funcionários não podiam chegar simplesmente a uma resolução, cuja situação resistia a qualquer aproximação.
O mencionado di-lema, que afligia ao corpo de funcionários como um tudo (sic) porém não ao esbelto e suave corpinho de dona Cândida (ou Candinha para os mais chegados), pachorrenta, avassaladora e generosa Auxiliar substituta de Reconhecimento de documentos Insuspeitos da respectiva seção, era o seguinte: deviam organizar os tradicionais jantares trissemanais que realizavam em homenagem aos membros da diretoria do ilibado serviço oficiAL às terças, quintas e sábados, como era o desejo de exatamente a metade do corpo de funcionários como um tudo, ou deviam fazê-lo às segundas, quartas e sextas para agradar à outra metade, que era exatamente a outra metade?
Após oito anos de exaustivas discussões, que às vezes tornavam-se até mesmo acaloradas, mas cujo calor nunca era suficiente para colocar em risco o emprego de qualquer participante das mesmas, e que, em outras vezes, chegavam mesmo a monopolizar as conversas durante os jantares que eram o objeto primeiro e que em ocasião alguma foram suspensos (muito pelo contrário, foram até mesmo estendidos para todos os dias da semana enquanto não fosse possível determinar qual seria a melhor opção para os dias em que os mesmos deveriam ser realizados) de toda a celeuma, pois bem, após os ditos oito anos os funcionários como um tudo conseguiram unir-se num esforço (sic) conjunto e por fim resolveram o que segue: formariam uma comissão; tal comissão chamar-se-ia Comissão de estudos de Análise, levantamento, Tabulação DE DADOS e implantação de Questões INTERNAS e afetas à diretoria do serviço Oficial; e a tal comissão seriam designadas as seguintes atribuições:
a) agilizar (sic) a análise dos fatos estabelecidos até aquela data,
b) levantar as variáveis que poderiam causar interferências deletérias em tais fatos,
c) cruzar os braços, digo, resultados de tal análise com aqueles de tal levantamento,
d) e aí cruzar as pernas, digo, os resultados então obtidos com aqueles provenientes da combinação de ambos, ou seja, da análise e do levantamento,
e) e por fim (sic) implantar as diretrizes que orientariam o processo de tomada de decisão sobre os supramencionados dias da semana em que deveriam ter lugar os também retro-referidos jantares em homenagem aos seletos membros da diretoria daquele Serviço Oficial implantado, patrocinado, fiscalizado e controlado por diversos organismos governamentais daquele país. 
Uma vez esgotados todos os sistemas de verificação legal e jurídica das implicações inerentes à constituição da comissão, processo esse que transcorreu em apenas 38 meses após a última tratativa n’O Carimbão d’Ouro, restaurante em que se levavam a cabo os aludidos jantares e em cuja fachada reluzia um lindo e irrestrito carimbo oficial em neon azul e roxo, que piscava a cada 500 milissegundos, chegou enfim a tão aguardada data em que a recém-instalada comissão realizaria a reunião de abertura para as igualmente sofregamente esperadas deliberações. 
Chegado o dia, e estando todos os funcionários afetos e diretores envolvidos reunidos no vasto saguão da repartição do louvado SeRViço soCIal, todos trocaram olhares interrogativos e ligeiramente nervosos e assim permaneceram até que alguém lá no meio da massa de barnabés ousou colocar a pergunta que não queria calar:
— Mas quem são os membros da comissão?
Um excitado burburinho prontamente percorreu a multidão que aguardava ansiosa, mas todos aquietaram-se tão logo o Diretor de políticas Internas do serviço Oficial ergueu um braço pedindo atenção e dizendo:
— Não há motivos para desalento, pressuposições apressadas ou espasmos musculares. Tendo em vista que nenhum membro foi deveras sancionado para a insofismável comissão, declaro a formação incontinenti duma subcomissão tripartite para analisar o caso e oferecer sugestões e, por que não? até mesmo recomendações para a linha de ação que todos devemos seguir!
Ante a salva de palmas que imediatamente tomou Conta do glorioso saguão, o Diretor de Políticas internas do serviço Oficial flexionou o tronco à frente em elegante mesura de lírico enlevo e agradecimento. Quando as palmas cessaram após apenas 18 minutos, ele constantemente retomou a palavra:
— Como representante dos funcionários do quinto Andar para baixo, indico o senhor Eurico Silveira. Como representante dos funcionários do Sexto andar para cima, nomeio a senhora Lurdes Bandeira. E como representante da diretoria, que, lógico, fica na Cobertura, designo a senhora Imaculada dos Reis.
Nova salva de palmas encheu os ares do estupendo Saguão, agora com mais vigor e acompanhada de febril Ovação e com duração de parquíssimos 39 minutos.
— E com a palavra a excelentíssima senhora Imaculada dos Reis! — exclamou o Diretor de políticas INTERNAS do serviço Oficial, apontando a mão espalmada para a recém-indicada membro da comissão que fora criada sem membro algum.
Dona Imaculada dos Reis era uma mulher de meia idade, baixa, alta, bem vestida com um cárdigã bege sobre calças cáqui e saia bordô, em resumo, distinta que nem ela só, e, qual todo funcionário (sic) que se preze, quase sem rosto e praticamente contracontestante.
Por isso, ou seja, por quase não ser autora duma petição inepta, foi ela, ou melhor, ela foi obrigada a envidar especial esforço (sic), às custas da parte interessada, naturalmente, para fazer-se escutar quando se aproximou do microfone e lascou:
— Bem, enfim! A quem interessar possa! Ab initio ab intestat, ab invito, pois, you know, jamais consultei um dicionário de latim na minha vida!
A plateia caiu no choro, emocionada. Uns queriam bis. Outros, deixando as línguas escapar da boca como se estivessem sedentos, pediam discurso. E Imaculada, sem protelar o início da ação cabível, mandou mais bala:
— Tendo em vista e dado que, todos sabem, e quem não souber saiba-o a partir de agora, que o dilema dos jantares é cada vez mais premente entre os funcionários (sic(sic)) deste volumétrico país!
— O hino! — alguém berrou da mesma forma indistintamente no meio da impessoal, peremptória e nada metafísica plateia.
Instalou-se solene e preponderante alvoroço por uso capião. Era impensável sequer pensar em realizar tamanho paroxístico evento todavia interveniente porém nada abstrato, por mais particularmente proclamada que houvesse sido a República!
— Eu tenho um cedê aqui! — berrou um providencial barnabé bem no meio da salmodiante porém coisa alguma coreográfica plateia.
Alívio geral e irrestrito! O cedê foi introduzido na vitrola e o magnânimo Hino Nacional finalmente tomou conta dos inebriantes ares da Repartição. Ao fim porém ao término, estrondosa salva de palmas irrompeu no recinto, perdurando brevíssimos 142 minutos. Imaculada fez uma pausa de igual duração, coincidentemente, e, demasiadamente ao cabo, prosseguiu, sub-rogada:
— Vejo-me forçada a tomar parte desta comissão para que, tanto no plano do doméstico quanto ao nível do internacional, há que confabular sobre as sanções fiduciárias e seguir adiante, noves fora! Por falar nisso, proponho desde já uma redução na jornada semanal de cinco horas para 28 segundos!
Retumbante, colossal, arrebatada salva de palmas e urros endoidecidos fez estremecer o pintado de azul-névoa saguão, acompanhada do uivos, assobios, murros e outras manifestações menos nobres e demiúrgicas no ar da turba barnabéica. Imaculada aguardou sabe-se lá quanto tempo que passou num piscar de olhos até que a comoção decrescesse e arrematou:
— Agora passo a palavra à Digna representante do sexto andar para Cima!
Novas ensurdecedoras palmas, até mesmo por parte dos que dormiam em pé — fato que passou desapercebido aos que o faziam sentados — e tomou a dita palavra a aludida Representante do mencionado sexto Andar para cima, ou seja, dona Valdenice Penélope das Mercês.
(Como todos hão de lembrar, quem o Diretor de políticas Internas do serviço Oficial indicara para representar o sexto andar para cima fora dona Lurdes Bandeira, não dona Valdenice Penélope das Mercês. Como sói acontecer nos procedimentos Internos das repartições do Estado, porém, as facções — pois que as há, claro, e de sobejo, tal como em todo órgão estatal digno do nome — fizeram um conchavo de última hora e a vontade da parte da dona Valdenice Penélope das Mercês terminou por prevalecer, espairecendo sobre a do grupo da dona Lurdes Bandeira.)
Uma vez explanado o acima exposto e exposto o acima explanado, dona Valdenice Penélope das Mercês trepou no púlpito, solenemente empolgou o microfone e abriu o verbo:
— Camaradas, como é do conhecimento de todos, o Departamento de INFORMAÇÕES Sensíveis para a salvação do estado e DeFINição das Mãos de direção das Ruas da Zona Leste, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Departamento de Estruturação de programas destinados À preservação dos Escaninhos d'Imbuia, em conjunto com a seção de Documentação de Ações para a Conjugação de esforços (sic. sic... sic!) e com a empresa de consultoria do pai do nosso companheiro aqui, o progressista Secretário adjunto De assuntos Afetos ao Sexto Andar para Cima, segundo a qual…
Ao proferir o último período, a saber, segundo a qual, dona Valdenice Penélope das Mercês foi interrompida por suprema e legatária manifestação de júbilo da plebe, que não pôde conter-se ante tão sincera peroração testemunhal. Quando todos ficaram afônicos de tanto berrar, Valdenice Penélope das Mercês retomou seu discurso exatamente donde havia parado:
— Olha, passei só 25 dias na praia depois do carnaval e hoje confesso ser a favor de treze meses de férias anuais. E 43 salários.
— No más! — ecoaram os que estavam à direita.
— Ni menositos! — suplementaram os que estavam à esquerda.
O Diretor de União de processos de MOBILIZAÇÃO subiu ao púlpito e sacramentou:
— Informo a todos que estou disposto a firmar minha posição e implicitamente transmitir um comunicado expresso, sendo que, como é do conhecimento de todos os presentes, a diretoria estima Em onze dias o prazo necessário para deliberação das moções apresentadas.
Assim que terminou sua exposição, o DIRETOR de união de Processos de Mobilização fez um gesto para dona Conceição Redenção, que sem tergiversação levantou-se da cadeira, apanhou uma maço de folhas xerocadas e passou a distribuí-las entre a multidão. Cada uma das folhas estampava a seguinte Conclamação aos Funcionários Da repartição:
Conclamação aos impressionantes funcionários da repartição
Camaradas, companheiros e simpatizantes (GPFD) !!!
Lá se vão 53 meses desde o início da nossa greve e o governo continua irredutivelmente irredutível, destomando conhecimento da legitimidade da nossa Causa (sic)! Nossa! Quão aprofundadas são as dificuldades da nossa classe! Pela permanênçia do CDRNBC! Abolamos a JDFRGr! Cadeia neles! Pela prorrogação do período de licença-eternidade para 12 anos! A diretoria da Repartição necessita urgentemente e chega de conversa! Mais oftalmologistas, otorrinos, videntes e Personal trêiners! A União é Nossa! Dá-lhe, Ari, que eu quero sacudir! (Provavelmente referindo-se ao autor da letra do Hino Nacional.)
O diretor de Promoção de ideias para a vitalização E reconhecimento Intensivo do Ambiente Regular de trabalho tomou o microfone e declarou finalizada a sessão:
— Declaro finalizada a seção!
Mas todos já tinham ido embora e ninguém prestou atenção.



Os admiráveis


Literalidades

Admiráveis, certas pessoas. Ao contrário de mim — um bruto, indivíduo mal-formado que não sabe olhar no espelho sem deixar de ver só a si e mais nada —, lapidam-se, lustram-se, lustram-se. Lustram-se tanto, que lhes sobra só brilho.
E tal como a luz, não têm onde pegar. A alguns, quase os paro para saber: por favor, seu fulano, onde é atrás, onde é a frente?
Gente esquisita. Não terão estofo? Só o lado de fora?
Fachadas indo e vindo, vindo e indo. Enquanto as olho atônito.
Quão sutis. Etéreas, mesmo. Demasiado para mim. E para a minha nata rudimentaridade.
Em geral não se vendem — não como quem renuncia à dignidade pelo ouro — e no entanto, ai, no entanto, só fazem se leiloar.
Até o fim, até o derradeiro fim, como se não houve alternativa, apregoam: “quem dá mais? Alguém dá mais?”
Mas nunca batem o martelo. Sabem que o próximo lance sempre pode ser mais alto.
E lá se vão todas oferecidas pavoneando-se pelo caminho sem bifurcações.
Que delícia de caminho! Mão única, nada de encruzilhadas. O verdadeiro caminho suave. E unívoco.
Cuidado! acautelo-me. São também geniais. Pois mesmo antes da invenção do marketing já se promoviam.
Espertíssimos, alguns. Matreiros, todos.
Haverá no mundo maiores peritos em sobrevivência?
Sim, nascem com respostas. Não há circunstância que lhes confunda. E têm tudo na ponta da língua.
E a saída... ah, a saída! Tão clara, tão na cara. Como não pensei nisso antes?
Mas não seja ingênuo a ponto de lhes perguntar. Neste mundo sem respostas, quem as tem é rei.
E eles não seriam tolos a ponto de ajudar na sagração de mais monarcas.
Eu, que quando quero dizer, digo, quando quero rir, rio, quando quero chorar, choro, eu vejo os matreiros me olhando intrigados, uns, apiedados de comiseração e espanto, outros, certos de que não tenho jeito.
Mas nenhum deles, qualquer que seja sua espécie, me censura. Nada! nem um resmungo, um cenho franzido, um alerta. 
Repreender expressamente, jamais! Seria conspurcar o alvo, diáfano véu de seda que parece acobertar suas existências.
E jamais se cometa a asneira de querer um tequinha desse véu! Primeiro, ele só existe para as divindades. Segundo, é invisível. Portanto, impróprio para nós que podemos ser enxergados, que temos carne e temos osso.
E mesmo que a muuuuuuuito custo você um dia conseguisse enxergar o véu e se enfiasse sorrateiramente sob ele, eles, os seres etéreos, saberiam e num estalar de dedos inventariam outro, ainda mais invisível.
A égide deles é a sofisticação — não umazinha qualquer que pudesse estar ao alcance de gentinha ordinária feito nós. Não. Estou me referindo é à Sofisticação inacessível, código secreto através do qual essa gente parca em número no mundo mas detentora de todo o poder se identifica. Para eles, trata-se da suprema linguagem que os une e separa do restante dos homens e mulheres, mamíferos primários que meramente habitam o planeta à mercê da lei de Darwin — lei definitiva da qual dão-se galhardamente o luxo de isentar-se.
Essa linguagem é mais poderosa do que o inglês ou qualquer outro idioma universal. Quando dois desses seres se cruzam no mundo, por fortuito que seja o encontro ou rápida a inefável troca de olhares significativos, prontamente se reconhecem como Admiráveis e passam a dialogar por meio de idiossincráticos e crípticos signos vocabulares e gestual estudado. E assim põem-se alheios às ridiculamente trágicas pessoas à sua volta, pois estão conectados por um sublime e sólido elo de aço banhado em ouro mas ao mesmo tempo tênue como o rastro de nitrogênio unindo duas nuvens boreais. Irmanam-se em semidivina comunhão e harmonia que, sabem, a Natureza — não Deus! — lhes proporcionou em dádiva exclusiva.
Feito uma genuína raça de perfeitos, têm o dom de se pressentirem. E logo se identificam. E se conectam. E assim dá-se a santíssima, singular, formidável comunicação entre os Eleitos!
Não, não se trata duma classe social “privilegiada”, nem dum grupo de bacanas com casa nos bairros chiques das cidades mais ricas, nem da elite dum país, e tampouco duma categoria de profissionais “bem-sucedidos”. Trata-se, sim, de pessoas de cepa desconhecida e identidade vaga, quase fugaz, e por isso mesmo, de complicada definição.
Admiráveis esses Seres Admiráveis!
E estão por toda parte.
Lisboa, América Latina, literalmente qualquer outro país.
Podem ser um pescador esquimó, uma engenheira mecânica paulistana, um australiano excêntrico, uma professora de geografia havaiana. 
Podem estar descendo a ladeira do Porto Geral, pedindo passagem pela tortuosa rua Direita, sentados num teleférico duma estação de esqui no gelado Alasca.
A situação geográfica, a distância, o nível de interincomunicabilidade, a escolaridade, o background, nada disso tem importância — o que conta é que são portadores de grau máximo de Sofisticação.
A Sofisticação leva à Comunhão. A Comunhão, à Empatia. Esta, ao “Sucesso” nos relacionamentos. Às vezes o “Sucesso” capacita o Admirável a comer a mulher do vizinho ou a Admirável a dar para o marido da vizinha (caso seja heterossexual, claro). 
Para os normais, a Empatia pode resultar no máximo num bate-papo, numa troca de sorrisos sábios e equilibrados ou risinhos nervosos, ou, se for negativa, numa troca de impropérios ou safanões. 
Com os Admiráveis, é diferente. Tomados desse sentimento único, avassalador, não agem nem reagem. O Requinte é tão sutil que acontece e não acontece ao mesmo tempo. Não há um esgar. Não se mexe um mindinho. Não se experimentam comichões.
A Empatia não é... bem, não é uma empatia… inocente. É um Método. Escrutínio. O Querer e o Saber. 
Os Admiráveis têm a técnica — mas que, paradoxalmente, não provém da prática nem do estudo: simplesmente existe.
Mais do que os pobres-diabos que pululam insensatos ao deus-dará — escumalha feito eu e você —, que com nossa linguagem natural nos expressamos e pensamos com nossos botões, os Admiráveis têm como razão última o exercício de Viver. 
Mas não é viver apenas. É Viver Sofisticadamente, em linguagem não passível de ser ensinada nem aprendida, apenas herdada. 
O que faz do Herdeiro um ser tão especial é exatamente a Herdade. Outros, para conquistar um lugar ao sol que nasce para poucos, precisam ter alguns talentos comezinhos como capacidade de esforço, obstinação, coragem, sensatez, todos aprendidos a duras penas e que em geral acabam dando algum resultado. 
Para o Herdeiro Sofisticado, obviamente não. No contexto da Sofisticação, o talento pessoal transmitido geneticamente é mais ou menos um atributo divino, que faz do Eleito o silencioso mas todo-poderoso espécime duma raça superior. Posso gastar 30 anos de minha vida estudando o linguajar, as maneiras e os trejeitos dos Admiráveis, e até ser capaz de alguma forma imitá-los — mas só enganarei leigos. Os Genuínos saberão que posso ter colesterol e ácido úrico no sangue. Mas Sofisticação, meu amigo, Sofisticação não é pra qualquer um.



Nostálgica manhã

Ah, doce liberdade
de me deitar e
fechar os olhos
e acomodar a cabeça 
no travesseiro enquanto
um antichoque percorre
meu corpo relaxando
meus ombros, meu
peito, minhas pernas e,
calculando minhas chances,
ir despencando
no abismo do sono
antes do poema perdido